Umas primas de longe

"Por sua causa,repreenderei o devorador"(Malaquias 3:11)<br><br>Morávamos na Rua Matuim, Jardim Oriental, Jabaquara, o ano provavelmente era 1957. Só sei que estávamos longe de 1959, um ano em que o devorador não foi repreendido!<br><br>Aquele janeiro de 1957 revelou-se um mês quente, com chuvas e temporais fortes, tardes abafadas e sufocantes, temperaturas altíssimas.Neste contexto as meninas chegaram! As aguardávamos ansiosamente! Elas eram filhas de um tio (materno) de papai.Eram quatros meninas:Vilma, Marlene, Maria Helena e Marli.Digo seus nomes sem nenhum pudor, aliás, de propósito, para que eu tenha sucesso no motivo pelo qual recordo esse episódio ocorrido naquele janeiro quentíssimo e chuvoso. Suas idades variavam entre 15 e 20 anos. Vocês podem imaginar a nossa excitação, meninos bobos de 08 a 13 anos!<br><br>Elas vieram do interior, da cidade de Avaré. Nos divertíamos muito com aquele sotaque "caipira". A cada erre puxado, ríamos pelos cantos da casa, mamãe às vezes ficava brava, às vezes não, participava conosco rindo e caçoando também; papai, ficava bravo sempre, franzindo a testa com ar severo e machadiano. No fundo ele sentía-se, e com razão,o responsável pelas meninas. <br><br>Vieram para fazer compras, de roupas, de enxovais, de louças, etc.Saiam de manhã e voltavam logo depois do almoço, fugindo das chuvas. Nos primeiros dias, mamãe as acompanhava, depois aprenderam o caminho e iam sozinhas.Ficaram conosco pelo menos 15 dias.<br><br>Elas dormiam em nosso quarto e nós, em colchões espalhados pelo chão de outro quarto, o de nosso irmão caçula. Os dias iam correndo felizes naquela casa, afinal foi bem antes daquele março de 1959.<br><br>Um dia, vindo das compras, creio que visitaram a 25 de Março, chegaram exaustas, com pacotes e mais pacotes de tecidos, nem quiseram almoçar. Deitaram em nossas camas. Usavam vestidos. Não fecharam a porta nem a janela do quarto.Calor insuportável!Vinha, através da janela, uma brisa que esvoaçava aquela cortina branca de rendas. Mas, a brisa era quente, daquela que sopra em cidades a beira mar. Acontece que a brisa esvoaçou-lhes também os vestidos, deixando-lhes a amostra coxas e calcinhas, diga-se de passagem, calcinhas de algodão, brancas e grandes. Neste momento, indo fazer não sei o quê, passei pela porta do quarto e vi a cena. Fiquei pasmo, os meus 09 anos me paralisaram diante de tal quadro, admirado, fiquei estático, olhos fixos, até ouvir um grito absurdo de horror e vergonha vindo de uma delas.Mamãe, logo chegou, correndo, esbaforida, beirando o desespero também. <br><br>No primeiro momento acalmou-se, pois, percebeu que eu era o protagonista da cena e, se tivesse acontecido algo de pior, não era comigo; enquanto ela tentava recompor as meninas e arrumar a cortina, meus irmãos se achegaram e ficaram surpresos com a minha (impossível)peraltice. Apesar do alívio, mamãe deu-me um safanão. Reanimei e<br>corri envergonhado.<br><br>Quando papai chegasse do serviço, já imaginava o que aconteceria. Para as meninas, eu, além de levantar-lhes os vestidos, as espionava também, e, por outro lado, eu conhecia bem papai e seus métodos. Tentei, em vão, me defender, falei da brisa, da cortina revolta que mamãe arrumara. Sofri de papai um castigo. Pobre papai, pobres primas!O castigo não apagou da minha mente aquela cena incrível, elas deitadas, vestidos revoltos pelo vento suave de uma tarde de verão. Pernas, coxas, calcinhas brancas e grandes,<br>reveladas. <br><br>Pela primeira vez, vi e admirei uma parte do corpo feminino, fiquei maravilhado. Não seria uma surra, por maior que fosse, que me faria esquecer aquele quadro impressionista!<br><br>Sempre notamos, eu e meus irmãos, talvez mamãe, a excitação de papai, o seu modo operandis, desde que as meninas chegaram. A nossa mesa era mais farta e variada que nos dias comuns. Aqueles dias foram incomuns. Talvez, digamos assim, ele agisse daquela forma para protegê-las. Queria, é natural, que elas se sentissem tranquilas. De repente, um lance louco desse…Foi estressante, não foi?<br><br>Naquela noite, após o jantar silencioso, voltei para o castigo, logo em seguida apareceu mamãe e, entre um beijo doce de boa noite e um sussurro, disse que acreditava em mim e, depois de outro beijo, saiu, quase que levitando nas pontas dos pés, fechou a porta e mesmo a vendo de costas, no escuro, captei, vindo dela, uma enorme amargura e, mais por ela, do que por mim, chorei profundamente.<br><br>As meninas foram embora e levaram consigo a lembrança daquele dia. Pela despedida, notei que jamais me perdoariam, como jamais me perdoaram mesmo, pois, depois disto houve outros, muitos, encontros, antes de e depois de 1959. Quando este assunto vinha à tona, raramente, diga-se de passagem, tentava provar a minha inocência. Nunca acreditaram em mim e diziam que, desde pequeno, eu era sacana!<br><br>Não levantei aqueles vestidos, só fiquei olhando, mais pela curiosidade de um menino, do que pela libidinagem, ausente ou adormecida em meu ser. Nunca mais eu as vi. Creio que, se elas lerem este texto, encontraram a paz, como eu a encontrei, escrevendo-o.<br><br>Algum tempo depois chegaria 1959 e, com ele, a tragédia de nossos anos, patrocinada pelo devorador que não foi repreendido! <br><br> Leve, leve, muito leve,<br> Um vento muito leve passa,<br> E vai-se, sempre muito leve,<br> E eu não sei o que penso<br> Nem procuro sabê-lo. (Fernando Pessoa)<br><br><br>E-mail: [email protected]<br>