Um paulistano

Sob o ângulo de visão de um garoto tudo parece ser bem maior do que realmente é: ruas, casas, bairros, áreas públicas, fatos ocorridos e mesmo os próprios adultos, a gente tem receio de lhes falar e quando cresce descobre que o cara é simpático e com um porte físico nada assustador. Às vezes ocorre o contrário, não se dá muita importância a determinados acontecimentos e, com o passar de décadas e décadas, a gente percebe que aquilo era muito importante.
Durante a II Guerra Mundial, apesar de o Brasil ter participado com o envio de tropas, nunca sofreu bombardeios bélicos. Mas, nós aqui em São Paulo, sofremos bastante com a falta de gasolina, de trigo e de muitos produtos que, na sua fabricação prescindiam de aditivos importados. Garoto, eu trabalhava na Gráfica Imperial, de um tio meu, sócio com seu cunhado. Na mesma gráfica trabalhava também meu irmão, Vicente, mais velho, eu com 11 e ele com 16 anos. Ele era impressor minervista e eu intercalador. Em casa éramos 9 filhos, eu era o sétimo e com exceção das duas menores, todos trabalhavam. Meu pai, negociante de cereais e minha mãe em casa, sem empregada, fogão a lenha, forno no fundo do quintal pra fazer pão uma vez por semana e sem nenhum aparelho das chamadas “linha Branca”, minhas irmãs, pespontadeiras de calçado, em casa com duas máquinas Singer. A mais velha, Ana, era costureira de vestidos.
Nessa gráfica, a do meu tio Vito, o tzi Vutuccio, além do serviço interno, eu tinha sempre que empurrar um carrinho, desses que até hoje é usado no Ceasa, pra entregar impressos da Rua Sampaio Moreira até o Mercado Municipal, maldizendo a impossibilidade de se usar o carro que, para evitar a instalação do gasogênio (dois enormes cilindros de quase 50 cm de diâmetro por 1 metro e meio de altura) na traseira do carro (lembram?), ele, o carro, ficou 4 anos, até o fim da guerra, em cima de cavaletes, na garagem. Quando não era entrega era comprar uma lata de 18 litros de querosene, necessário para dissolver tintas de impressão e era um produto também racionado.
Meus pais, nos sábados, começavam de manhã bem cedinho a fazer os pães, ficassas, (pão de batata), piccicatelas “scagdete” (taralas salgadas) e “pi lu zuchero”, (adocicadas), “scarteletes” (massa enrolada embebida em mel). Todos eles feitos com amor e carinho e muito trabalho. Às 4 da matina meu pai acendia o forno, de formato iglú, e depois de duas horas, com o forno bem quente e fechado, começavam a introduzir os pães e as demais guloseimas sobre uma camada de cinza, exalando um perfume que alcançava toda a vizinhança. Que tempo maravilhoso, quanta alegria, com 9 filhos comendo, bebendo, vestindo, calçando e o melhor, todos saudáveis.
Como a farinha de trigo estava também racionada, começamos a ouvir o noticiário pra saber que bairro e em que padaria teria pão naquele dia. A cota era de um filão (espécie de baguete, um pouco mais gordinha) por pessoa. Aí é que começava a farra (pra nós, não para meus pais…), a família, quase completa, ia de bonde, do Braz pra Penha, Vila Mariana, Belém, Cambuci etc, e cada membro do clã trazia um filão. Durante o trajeto de volta, a gente ia tirando uma casquinha do pão, chegando em casa quase sem nada. Por isso é que eu falei que, para um garoto, as dimensões de tudo se amoldam de acordo com sua capacidade de absorção e compreensão enquanto que para meus pais aquilo era um verdadeiro sacrifício.
O velho Bartholomeu, meu pai, um dia teve uma boa idéia; o Matarazzo, que tinha um grande moinho na Rua Monsenhor Andrade, não estava recebendo trigo da Argentina por causa da guerra, estava indo pra Europa. Pra aliviar o grande cliente, eles mandavam muito macarrão, com ovos. Meu pai, espertamente, comprava grande quantidade, punha o macarrão de molho em água fria e quando a massa se desfazia do formato original, (espaguete, parafuso, talharim etc) tinha nas mãos uma massa cor creme com que fazia um pão delicioso. Ai, que saudades…
Outra ocasião foi a em que, perto de casa, na Rua Alfândega, no Braz, estavam velando um defunto, vizinho nosso falecido no dia anterior. Vocês sabem que a maioria dos enterros, na época (mais ou menos até 1950) o velório era uma ocorrência social de caráter bem íntimo, sempre na casa do falecido e preparado, organizado e paramentado pelo Rodovalho (pra mim, sinônimo de morte), organização voltada unicamente para estes eventos, com os carros também exclusivamente destinados a esse mister, um para as flores e outro para o caixão.
Agora, os carros merecem um capítulo à parte, autênticas peças de museu, eram, calculo eu, de 1915 ou 1920, verdadeiras carruagens, num estilo inimitável. Com uma simples visão destes carros, já se sabia que era enterro. E todos à manivela, nada de partidas elétricas. Todos na cor preta com aplicações em ouro. A empresa Rodovalho forrava as paredes da sala onde fosse acontecer o velório com um cortinado preto bem grosso, com aplicações douradas onde pousavam o caixão, punham uma saia pra esconder os pés dos cavaletes. E a veneração era quase sempre no primeiro quarto da casa, bem próximo da rua.
Nesse dia ensolarado, um pequeno grupo de garotos brincava despreocupadamente de esconde-esconde nas proximidades do velório e, em dado momento, um deles resolve se esconder sabe onde? Pois é, debaixo do caixão. Os adultos, em volta, sem chamar muita atenção, tentaram convencer o garoto a sair dali e ele respondia apenas pedindo pra que não avisassem os outros que ele estava ali, pra não ser “queimado”. Como ele resistia dizendo que o morto era amigo do seu pai e que ele tinha o direito de ficar ali, arrastaram ele pra fora, a força. Estando na calçada, descoberto pelos amiguinhos, ele se prostrou a porta do velório e fazendo “uma banana” pra todos, gritou em alto e bom tom: quando tiver um enterro na minha casa, nenhum de vocês vai entrar, tá?

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