O professor Carone do Firmino

Não acredito que qualquer ex-aluno do Firmino de Proença da Moóca e que tenha estudado na década de 60 não se lembre do professor Nicolau Carone de desenho.

O Carone era um misto de professor e irmão mais velho. Era duro e amável ao mesmo tempo, dava cada tapão nas costas dos alunos com a mão em forma de concha pra fazer bastante barulho e seguido de um xingamento típico: "Seu animal de teta! Onde você fez este seu trabalho? Na oficina do seu pai? Que papel é esse? Você embrulhou teu lanche de mortadela nele? Que porcaria de trabalho… vai fazer de novo e espere só a nota que eu vou te dar… parece que bebe… olha só a ponta desse lápis!” E assim por diante.

Mas era um artista e ensinava ser artista. O Carone conseguia despertar nos alunos um respeito tão grande que a gente fazia suas lições primeiro que todas as outras por prazer e medo, e outra, para rir dos colegas que entravam na ira dele… Acho que isso não cabe mais porque alunos hoje não respeitam tanto os professores e pais defendem mais os filhos.

Ele recrutava os alunos pela cara e no primeiro dia de aula ele já dizia em qual carteira você deveria sentar até o final do ano, pois toda aula de desenho nos transferíamos para uma sala que era só dele.

Sua veia artística era recheada de grandes feitos, mas hoje eu penso, que era uma pessoa tímida além de ser um solteirão convicto. Ele restaurava objetos de arte, principalmente da família Matarazzo, pintava, esculpia, laminava em ouro molduras de quadro, levava-nos à Bienal, horto florestal, passeios em Paranapiacaba. Uma vez recrutou creio que uns oito ou dez meninos para vestirem uma roupa, vamos dizer assim, de pequenos padres para comporem o altar no casamento de alguém da família Matarazzo – não tenho certeza se era o da Maria Pia. Ele desenhou a roupa, mandou nossas mães fazerem como ele tinha desenhado. Muitos anos depois vi as fotos desses nossos colegas vestidos para esse evento.

Ele ensinava a regra básica de um aluno de desenho: escrever em letra bastão e a apontar o lápis Johan Faber n° 2 com a famosa gilete Valete. Traçar linhas de 2 milímetros de altura e lá escrever uma frase onde apareciam quase todas as letras do alfabeto: "O magro faquir explicou ao velho janizaro o estranho significado daqueles quiosques", para uma espécie de treino do que no resto do ginásio e científico iríamos fazer.

Eu mesmo cheguei a dar aulas de reforço para alunos dele, mais de séries anteriores. Como dividir uma circunferência em "n" partes iguais só com a ajuda de um compasso, que era a sua principal ferramenta. Não tinha como não aprender com ele. E o curioso é que os piores alunos em comportamento no âmbito geral do Firmino, na aula dele eram os que melhor correspondiam e tiravam boas notas. E eu me incluo nisso. Só se o aluno fosse muito, mas muito ruim de aplicação e/ou concentração não passava com ele… A bem da verdade ele já punha fora de sala quando o aluno já não conseguia mais acompanhar. Nesse ponto ele era bem severo, mas pouquíssimos repetiam de ano na matéria dele.

Certa vez, eu tinha ficado de segunda época em inglês e estava no colégio aguardando a chegada da professora, Dona Aimée, para fazer o exame, com um medo danado de repetir de ano, pois era a segunda vez que eu fazia a 4ª serie e se repetisse seria jubilado, nisso aparece o professor Carone e me perguntou o que eu estava fazendo ali, já que era período de férias: "Tô de segunda época professor". “De quê?”, ele perguntou.
"De inglês e preciso de 5,5 pra passar”, respondi. Nesse momento a professora chegou e, como ela não ia muito com a minha cara, me passou a prova, sentou-se sem sequer olhar na minha cara. O professor foi até a mesa dela conversou alguns instantes com ela e voltou onde eu estava sentado e foi me "passando a cola" de todas as questões. Eu não acreditava que aquilo estava acontecendo comigo e justamente com ele, o professor mais linha dura de todos. Ele ainda teve o capricho de dizer duas respostas erradas para eu não sair com 10 na prova, mas me alertando para isso, é claro. Tirei 7,5! Ela corrigiu ali na hora. Ufa! Passei!

Meses depois, quando começaram as aulas do período seguinte, eu cruzei com ele na saída de uma de suas aulas e ele me deu o seu famoso tapão nas costas e falou: "Seu malandro! Vê se cria juízo e estuda um pouco mais e pára de levar essa vida de molecagem… Só fiz aquilo porque você tem bom coração!".

Já nos anos 80, depois de casado e com três filhos fui visitá-lo num minúsculo apartamento na Rua Apeninos, e quando estava no saguão do prédio aguardando sua chegada ele lá de longe quando me viu já foi falando: "Você foi meu aluno do Firmino, não lembro do teu nome, mas foi meu aluno".

"Sertorio, professor, Sertorio!", e aí foi o começo de uma conversa que foi até altas horas da madrugada lembrando de muitas coisas e me mostrando outras tantas que ele ainda fazia.

Ele era um especialista em anjos. Suas paredes eram forradas de telas com eles alem de esculturas. Ele conseguia pintar cavalos brancos em tom acetinado em cima de folhas de Duratex. Era incrível!

A sua vida estava contada em vários cadernos, aqueles do tipo contador que se vendia no passado que eram grandes de capa preta dura, onde no espaço entre as linhas ele fazia mais três e lá, com sua indefectível letra bastão, escrevia o seu diário.

Fui mais algumas vezes ao seu apartamento, ora com a minha mulher ora com a minha filha mais velha e ele sempre muito atencioso, aproveitando a deixa para me entregar com as minhas travessuras. Numa dessas vezes ele se queixou, com uma certa mágoa, de um político da atualidade, na época senador, o qual tinha sido também seu aluno e, quando já famoso, num encontro casual, este não fez muita questão de se lembrar do velho professor. Vi isso nos olhos dele.

Dentre os seus predicados havia uma quiromancia autodidata. E numa dessas vezes ele previu o seu próprio destino: "Vou morrer com 77 anos, do coração veja aqui na minha mão…".

De fato como ele se foi, sentado no seu sofá e descoberto quase uma semana depois.

Muitos dos que lerem esta estória terão a sua pra contar também vividas com o professor, que com certeza deixou marcas na nossa geração que serão lembradas por todos de como um professor de desenho ensinou muitos a serem cidadãos somente pelo seu amor à arte.

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