Comecei a me entender como pessoa crítica quando me apaixonei pelo trabalho de Adoniran Barbosa. Sempre me chamou a atenção aquele senhor de refinado bom humor – o humor dos sábios -, exibindo um português tão propositalmente incorreto. É bom saber que o exagero nos erros veio por indicação do sexagenário conjunto musical Os Demônios da Garoa, acreditando que, assim, as músicas chamariam mais a atenção do público, teriam mais charme… E têm mesmo.
Tenho um imenso prazer ao utilizar as músicas de Adoniran na sala de aula, me ajudando a explicar o progresso de São Paulo desde a década de 50. Podemos compreender uma parte significativa da nossa história simplesmente analisando o personagem assumido pelo filho de imigrantes pobres, o modesto João Rubinato.
A família de Adoniran veio de Treviso, na Itália, se fixando em Jundiaí para trabalhar nas fazendas de café. Como a exploração era absurda, a família, como tantos outros recém-chegados, acabou se dirigindo para a capital, na esperança de construir uma vida mais honrada, pautada no esforço e no trabalho árduo. Ali, o então João Rubinato foi de tudo:
entregador de marmitas, varredor numa fábrica de tecidos, trabalhou no carregamento de vagões de trens suburbanos, foi tecelão, encanador, pintor, garçom, metalúrgico e vendedor de meias, para depois abrir espaços para o rádio e se destacar como um dos mais representativos sambistas do Brasil.
Suas letras tinham como ponto de partida a tragicidade do cotidiano de uma cidade repleta de imigrantes pobres, que precisavam sobreviver à luz de tantas diferenças e desigualdades. Costumava dizer que "Pra escrevê uma boa letra de samba, a gente tem que sê em primeiro lugá anarfabeto".
"Saudosa Maloca", por exemplo, escrita em 1951, retrata uma cidade que se verticaliza, relata o drama daquele que perde o pouquíssimo que tem e se refere ao problema da falta de identidade do trabalhador pobre. "Foi aqui, seu moço, que eu, o Mato Grosso e o Joca construímos nossa maloca". E, pior, retrata a impotência desses trabalhadores frente às transformações da cidade em pleno momento de industrialização: "Peguemo tudo as nossas coisa e fumos pro meio da rua apreciá a demolição".
E tudo isso preservando o romantismo, uma serenidade ímpar, sem nenhum traço de rancor. "Cada tauba que caía doía no coração". "Os homi tá com a razão, nós arranja outro lugar".
A simplicidade, o sentimentalismo de "Trem das Onze", de 1965, são inigualáveis. Ele, sentindo muito, deixa a sua amada porque tem mesmo que tomar o trem, senão "só amanhã de manhã" (mostrando a precariedade dos meios de transporte para os mais simples. Afinal, ele morava em Jaçanã). Ao mesmo tempo, existe a responsabilidade para com a mãe: "Sou filho único, tenho a minha casa pra olhar".
Eu sempre tive o imenso prazer em perceber o quanto se conhece Adoniran, mesmo os mais jovens, que não resistem ao "Trem das Onze". Sinto uma imensa satisfação por isso, sobretudo como paulistana conhecedora do Bixiga, local tão freqüentado pelo nosso brilhante sambista.
Nas nossas últimas férias em São Paulo, tivemos o privilégio de, na casa de um primo, passarmos o primeiro dia do ano na ilustre companhia de um senhor já idoso, com uma grande beleza no olhar e maciez na voz, uma simpatia: o Sr. Oswaldo Silva, que acompanhou com o seu teclado, durante quarenta anos, vários cantores na extinta casa noturna Som de Cristal.
Ele já havia tocado com Jamelão, Nelson Gonçalves, Orlando Silva, Jair Rodrigues, enfim, a nata da boa música de tempos atrás. Pedíamos e ele ia tocando e cantávamos felizes, lembrando e vivendo com intensidade, respirando um pouco de arte e da sabedoria dos mais velhos. Naquela tarde, a mais feliz no ano para mim, cantamos muito as maravilhas de Mário Lago e de Adoniran, e eu, muitíssimo orgulhosa por ver meu filho tão jovem sabendo cantar o "Trem das Onze".
Mesmo em meio a tantos problemas sociais, o elegante bom humor permaneceu inabalável, merecendo destaque esse pequeno trecho extraído do "Samba no Bixiga":
Domingo nós fumo num samba no bexiga
Na rua major, na casa do nicola
A mesa não deu conta
Saiu uma baita duma briga
Era só pizza que avuava junto com as braxola
(…)
Num tem importância
Foi chamada as ambulância
Carma pessoal,
A situação aqui está muito cínica
Os mais pior vai pras clínica
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