Macarronada da Mama

Gemas de um colar de recordações.

Nesta trepidante, cativa, brilhante, humana, perversa e amável cidade de São Paulo, no meu querido bairro do Brás, tive uma infância e juventude recheadas de fatos, ocorrências, costumes, hábitos os mais diversos e, às vezes, os mais raros.

Ao contrário da maioria dos colaboradores deste formidável site, não tenho grandes histórias a relatar envolvendo escolas, professores, pois minha formação se deu com: Escola Maternal, com Dona Mafalda na Rua Lameirão; Grupo Escolar Romão Puigari; e, um ano só, em 1945, na 30 de Outubro da Rua Oiapoque, à noite, onde dormia em todas as aulas.

Sempre no Brás. Gibis, muitos e diversos gibis, colaboraram pra minha formação. Comecei a trabalhar com 11 anos, Escola Senai (1946/47), e só.

Quando ainda usava calças curtas, com suspensórios do mesmo tecido das calças, sonhava em ter suspensórios de "elásticos", com as presilhas em forma de "A", com dois botões nas pontas. Os lenços, pras crianças, minha mãe cuidava da praticidade e economia, evidentemente. Quem lembra dos saquinhos de sal Rodolfo Valentino, com o rosto do artista estampado no saco, caracterizado pelo filme O Sheik, pessimamente impresso em azul? Pois é, minha mãe, depois de esvaziar o saco, abria, lavava bem, um debrum nas bordas e lá estava um lenço com a estampa do Rodolfo, companheiro das primeiras palavras do meu aprendizado.

Ao chegar da escola, mal me punha a coçar a cabeça e lá vinha o "pente-fino", verdadeiro instrumento de tortura na caça de piolhos, que a molecada, na escola, teimava em agraciar os colegas, com a distribuição dos insetos em todas as cabeças. Quase não se ouve mais falar de piolho. Eliminados, naturalmente, pelos novos odores que surgiram nos últimos 30 anos.

Nos fins de semana, pra ganhar a matinê do Cine Glória (que era à tarde), tinha uma fileira de sapatos, oito a dez pares, pra engraxar. E das pulgas, alguém lembra das pulgas? Desapareceram! Nem os cães se queixam mais. Parece que foram eliminadas dos cenários artísticos, cinematográficos e teatrais. Será que nas conduções ainda se fazem sentir? Acho que não. Nos ônibus e no metrô se ouve falar de aperto, sufoco, mau cheiro, mas de pulgas nada. Também, com o "perfume" exalado pelos veículos, não há pulga e piolho que resista. Eliminadas por "decurso de prazo", "mutatis, mutantes" acho que se transformaram em outros bichos.

Falar em pulgas, lembro de trovinha que a gente cantava assim: "Como pula, como se agita, como é perversa essa pulga maldita; fui na cozinha fazer meu café, a pulga maldita mordeu o meu pé".

Para o nosso fogão Sangiovani à lenha, que minha mãe resistiu até 1954 em não substituí-lo por gás, com medo de explosão (?), era o degas aqui que puxava uma carrocinha de lenha, da fábrica de formas de calçados Chiarella e Tabini (do pai do Rafael, craque do Corinthians), da Rua Monsenhor de Andrade até a Rua Alfândega, onde eu morava.

Sempre tive vontade de representar. Gostava muito de ler, como até hoje, livros do Emílio Salgari, Rafael Sabatini, Jack London, Monteiro Lobato (coleção inteira do Os 12 Trabalhos de Hercules) e todos os escritores que alimentavam os sonhos e fantasias da juventude. Nos domingos, almoço, no mínimo, entre filhos, noras, genros e netos; vinte a vinte e cinco pessoas, fora os visitantes, amigos íntimos, pra saborear a bela, caprichada, deliciosa e insuperável macarronada da mama (molho de tomate feito em casa), com bracciola, "pigpit" (almondegas), ficazza (pão de batata), "petza- dolci" (torta de ricota) e por aí afora… Tudo feito por ela, com carinho, amor e ternura.

Sem desfazer das outras, mas, uma mulher e tanto minha querida mãe, Felícia. Ex-tecelã da Mariângela, Matarazzo, com meu heróico pai, Bartholomeu, criaram dez filhos desse jeito, e viram todos casarem (só um morreu, com 2 anos). Isso tudo sem ter em casa geladeira, máquina de lavar roupas, fogão a gás, etc. Se eu pedir pra uma moça, hoje, fritar um ovo… Ah, deixa pra lá, vá… Pra minha felicidade, a Myrtes assimilou tudo de minha mãe, graças a Deus.

Na juventude, jogando no São Vito, fundado por mim e colegas em 1946, me divertia no parque Dom Pedro II, nas imediações do Palácio das Indústrias, sempre sonhando com… Ahhh, sei lá!

Um dia, no ano 1947, voltando do Parque Xangái, em frente ao Hospital Dom Pedro, eu e meus amigos vínhamos rolando um enorme tronco de árvore simplesmente por rolar, até onde fosse possível. Avistei um galho pendente de uma das inúmeras palmeiras da área. Pensei comigo: "Uma bela ocasião pra mostrar pra turma minhas habilidades macacais, imitando com perfeição o salto do Tarzan, agarrado no cipó". Saí correndo em direção ao ramo, acompanhado do berro tarzanístico, que eu imitava com perfeição. Agarrei o ramo; a velocidade que dei me impulsionou pra bem alto. Na volta, me virei; o vento, sibilando em meu rosto, esvoaçando meus cabelos, me dava a sensação de vôo em plena selva africana. Quando estou na horizontal, retornando do balanço, de cara pro chão, o galho, precariamente preso à palmeira, rompe-se; caio feito um saco de feijão, esborrachando minha cara no gramado (ainda bem…). Saio da arriscada tentativa de me igualar ao rei das selvas com a testa, o nariz, a boca e o queixo sangrando, e os dois joelhos em estado lastimável. Se o galho estava solto do resto dos ramos, é porque ele estava prestes a cair, sozinho. Apenas precipitei sua queda. E eu com ele. Tarzan, só o Johnny Westmuller.

Continuamos a rodar o tronco. Chego em casa sujo; rosto, um tomate esborrachado. Minhas irmãs e minha mãe, ahhhh, viram meu estado. "Briga!”, gritaram. "Batalha sangrenta, mas eu venci!", respondi.

Obrigado.

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