Viagem de carro

Desde sempre eu vi magia em viajar de carro. Sempre foi assim. Um espetáculo desenhado pela simplicidade, pureza, o encanto pelo novo e pelo cheiro da terra. Durante longos dias eu ficava à espera. O melhor: as paisagens seriam vistas e admiradas com mais tempo e cuidado. Na realidade, aquelas montanhas seriam literalmente adoradas pelas minhas retinas. As montanhas sempre me fascinaram: sinal da natureza de que as dificuldades têm beleza própria, riquezas incontáveis, surpresas que uma vida de caminho plano não mostra.

Possibilidade de transposição, de que na vida tudo é possível, sofrível e magnífico. Nessas viagens sempre seria possível parar no caminho, respirar o doce perfume das mangueiras ou de qualquer outra árvore na beira da estrada. Felicidade, para mim, tinha época própria para se manifestar. Era quando o meu tio ia nos buscar em São Paulo para as férias no Paraná. O meu tio não apreciava essa história de comida em restaurante e gostava mesmo de almoçar um franguinho no meio do caminho. Aquele frango assado – frio – com uma farofinha caseira e laranja de sobremesa era, para mim, o mais refinado deleite, a verdadeira magia do novo, do inusitado, do estar fora do lugar comum.

Em uma dessas paradas de um janeiro ainda de temperatura amena – retratos de pura satisfação infantil – eu exercitava a felicidade. Ainda pré- adolescente, eu tentava descobrir a arte, e através dela eu seria única. Com uma Kodak na mão, eu me achava o próprio Sebastião Salgado. Fiz uma breve pausa no almoço, andei um pouco e fotografei um peixe grande dependurado em uma barraca. Achei a foto genial e eu a apresentava para os outros como seu eu fosse o prenúncio de uma grande artista, conhecida pela sensibilidade, pela inovação, pela vanguarda. Ora essa, tratava-se de um solitário do peixe na beira do caminho e nada mais!

Na mesma estrada, algumas décadas depois, venho observando tudo. De ambos os lados, imensos “flamboyants” exalam graça e frescor. Silenciosamente fico a acreditar que umas tantas dessas árvores foram plantadas pela minha madrinha. Sempre distribuindo amor e o sentido da felicidade por onde passava, a tia Norma esteve uma vez fazendo essa mesma trajetória de carro, levando consigo um pacote com sementes de “flamboyant”. De quando em quando, ela enchia a mão, abria o vidro do carro, e, feliz e acreditando na beleza da vida, espalhava as sementes ao vento. E chegou a dizer: "se um dia existir ‘flamboyant’ nessa estrada, fui eu quem plantei".

Eu passo pela estrada. Vejo os “flamboyants” como uma oração, um hino à vida, um brinde à alma imortal. E não há no mundo uma mulher que tenha amado mais que a tia Norma. E ninguém que tenha deixado uma herança mais duradoura. O “flamboyant” tem a altura apropriada para abrir seus galhos e dar a sombra milagrosa e mansa para os passantes no seu cansaço e, muitas vezes, desânimo pelas dores e dissabores da vida. Como a tia Norma, sempre de braços abertos para distribuir suas bênçãos com uma inesgotável alegria e gratidão pela vida, mas sempre com uma sonora gargalhada e luz celestial e confiante no olhar.

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