Nos anos 40, antes de eu nascer, meu pai foi cobrador de bonde em São Paulo. Bonde aberto.
Era um trabalho duro andar empoleirado no estribo cobrando as passagens e caçando passageiros que tinham por hábito viajar de graça, tentando despistar o cobrador. Mas com o tempo, o cobrador passava a conhecer quase todos os macetes dos malandros.
E era também um trabalho insalubre. Na hora do rush, o bonde vinha apinhado de gente no estribo e o cobrador passava a maior parte do tempo no lado de fora, tomando chuva e sentindo frio. Nessas horas, ele cobrava várias passagens ao mesmo tempo e não tinha como ir registrando, já que a tal registradora ficava na extremidade do bonde, atrás do motorneiro. Puxava-se uma cordinha e a passagem era registrada.
Na hora de registrar, meu pai fazia o que grande parte dos cobradores fazia: não registrava todas as passagens. Era o famoso "tlim, tlim, dois pra Light, um pra mim". Na verdade, ele não estava roubando a Light; prefiro dizer, eufemisticamente, que ele estava "retirando um adicional de insalubridade" por conta própria.
Nos pontos finais, ele dividia a féria com o motorneiro. Ele precisava tomar muito cuidado porque um "secreta" (fiscal disfarçado) podia estar viajando naquele bonde.
Nessa época, com quarenta anos, ele era magro e já meio combalido dos rins e da vesícula. Logo depois que eu nasci, ele teve que fazer uma cirurgia para extrair a danada. Mas, nessa época, ele já não estava mais no bonde. Trabalhou um certo tempo como cobrador de ônibus, onde já ficava sentado, e depois passou para os escritórios da CMTC, onde ficou até a aposentadoria em 1971.
E o que esse "adicional de insalubridade" rendeu, afinal? Minhas irmãs contam que, em cima do guarda-roupa, havia uma caixa de sapatos cheia de moedas. Com essa "poupança", ele comprou para a minha mãe uma máquina de costura Singer novinha. Com essa máquina ela me fez muitos pijamas de flanela, camisas e calças. Ela aprendeu até a consertar a máquina quando dava algum problema.
Meu pai faleceu em outubro de 2006, com 99 anos de idade. Faltavam só quatro meses para o seu centenário quando, gozando de perfeita saúde, em pleno Dia dos Pais, "resolveu" quebrar a perna. Faleceu dois meses depois, porque não suportou a carga de remédios que tomou após uma mal sucedida cirurgia.
No início de 2007, uma grata surpresa: o Fernando Portela lançou seu livro "Bonde, Saudoso Paulistano", com a história dos bondes de São Paulo e ilustrado com 180 fotos. Meu irmão ganhou do filho um exemplar. Para seu espanto, em uma foto em que vários funcionários posavam na frente de um bonde aberto, lá estava ele, o seu Osvaldo, magro, na fileira de cima, encostado na primeira coluna na parte da frente do bonde. A foto foi escaneada e devidamente emoldurada.
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