Eu sou muito tímida, contudo muito observadora, por conseguinte sonhadora. Não sei se os adjetivos seriam exatamente nesta ordem, mas esta estranha combinação me fez optar pelo Teatro. Na realidade não foi uma opção, foi mais um acaso do meu amigo destino.
Nos idos anos de 1981, havia acabado o colegial e, sem dinheiro pra faculdade, eu comecei a trabalhar de Kardexista no escritório da empresa chamada Cosele, de peças eletrônicas, situada num prédio ali quase na esquina da Consolação com Caio Prado. O dono era um americano chamado Terry. Minha rotina diária de segunda a sexta consistia em pegar o ônibus no Largo do Limão, a famosa linha 922, ir trabalhar e, no final do dia, fazer o mesmo caminho de retorno; ou seja, um dia-a-dia muito do previsível.
Numa certa manhã, enquanto esperava o ônibus, encontrei com uma conhecida minha, e até aí nada fora do normal. Seria um daqueles dias corriqueiros, se não fosse o fato dela estar eufórica com a descoberta de um curso de teatro num espaço cultural no Brás. Ela, muito exaltada com o achado, me dizia: "Você precisa conhecer o espaço, é maravilhoso. E as aulas acontecem de sábado e domingo, e são de graça!”.
Eu escutei com ouvido de surdo, balancei minha cabeça numa concordância sem muito entusiasmo, pois, primeiro, nunca pensei que ela fosse aficionada por teatro e, segundo, eu nunca me imaginei na frente de uma multidão interpretando um texto; eu mal conseguia me comunicar com uma pessoa por vez.
E, assim, esqueci-me do assunto. Na semana seguinte, o sr. destino estava de plantão e encontrei a dita cuja novamente, que continuava a insistir para que eu fosse até lá no sábado, às nove da manhã, dar uma olhada, e me deu o endereço por escrito: Rua Visconde de Parnaíba, 2437, metrô Bresser. E ainda se prontificou a passar na minha casa para irmos juntas. Gentilmente agradeci e segui meu caminho. Contudo, a decisão já estava tomada: eu não iria até lá. Mas por que não conseguia verbalizar esta minha determinação??? E dizer a ela que eu não iria?? Talvez o meu subconsciente já vislumbrasse uma idéia futura que eu ainda nem imaginava.
Bom, no sábado de manhã, levantei para os meus rotineiros afazeres e qual não foi a minha surpresa, lá estava ela no portão para irmos até o tal "teatro". Aí, encurtando a conversa, chegamos até o lugar: Oficina Cultural Amacio Mazzaropi. Gostaria de fazer um aparte a respeito daquele espaço cultural, o qual me chamou atenção pela sua arquitetura rústica, que depois vim a saber que o mesmo, nos anos 50, abrigava o Olificio Atorino, fabricante de óleo de mamona e que sofreu algumas remodelações para abrigar este projeto da Secretaria de Estado da Cultura.
Mas voltando a minha saga da ida à aula de teatro daquele dia, entramos e eu, muito nervosa, pois estava numa situação totalmente fora da minha zona de conforto, me perguntava: “O que é que estou fazendo aqui?”. Ela, me puxando de um lado para o outro e me dizendo para colocar meu nome na tal lista, para me inscrever no tal curso. Era como se estivesse num estado de torpor, meio sonâmbula, e fui me deixando levar por aquela situação, esperando acordar a qualquer minuto. Contudo, o pesadelo continuou e, sem mentira nenhuma, em meia hora, eu estava sentada numa roda junto a todos os alunos, com um texto na mão, com professores de teatro fazendo a apresentação dos cursos e explicando sobre a possível montagem de espetáculos.
Esta situação seria engraçada se não fosse trágica para uma adolescente extremamente tímida como eu, que me enrubescia só de olharem pra mim. Passados alguns minutos desta agonia, eu procurei me acalmar e ficava pensando em alguma desculpa pra sair dali, até que uma senhora apontou pra mim e disse: "Por favor, você leia a fala da personagem da página tal". Eu entrei em pânico, pensei que fosse morrer; mal conseguia olhar para as pessoas ao meu redor. E ouvi a frase pela segunda vez: "Você aí, de cabeça baixa, por favor, leia a fala!". Eu tremia ao virar as páginas, pois sabia que, naquele instante, todos os olhares estavam voltados para mim; senti meu rosto pegar fogo de tão vermelho que devia estar.
Não sei de onde veio a coragem, porém não tive escapatória a não ser ler a pequena frase, com um fio de voz. E, para minha surpresa, sobrevivi! Contudo, pensei: “Agora posso ir embora”. Que nada! Um dos coordenadores começou a dividir os grupos e a distribuir os papéis e acabei ganhando umas duas frases. Naquele sábado, fiquei até o final da aula "fazendo" o que me mandavam fazer: exercícios vocais, anotando informações sobre o método "Stanislavski" de atuação, um mundo muito surrealista pra mim.
Entretanto, saindo de lá, me sentia diferente. Eu não era a mesma que havia adentrado aquele mundo horas atrás. Aquela experiência mexeu comigo num nível que eu não sabia explicar. Talvez Freud pudesse ter uma razoável explicação para esta minha "repentina" vivência transformadora.
Enfim, voltei para casa com o texto e duas frases pra "trabalhar" a entonação. E adivinhem? No sábado seguinte estava eu lá, com as frases decoradas, e no final daquele ano estreei meu primeiro espetáculo, Pedro Pedreiro. Obviamente não foi fácil ludibriar o obstáculo que era a minha timidez, contudo esse foi o inicio de uma grande paixão pelo teatro; foi amor à primeira vista.
O resto é história. Uma coisa levou a outra e, assim, oficinas atrás de oficinas, participei de espetáculos, comerciais de TV e acabei fazendo faculdade de Artes Cênicas. Só para constar, dentre as pessoas que estavam naquele meu aterrorizante primeiro dia de aula teatral, nada mais nada menos que Everton de Castro e a saudosa Lélia Abramo, a tal senhora que apontou pra mim. E como a primeira diretora teatral a gente nunca esquece, cito esta que se tornou minha mentora e, na realidade, minha grande amiga: Elvira Gentil.
Entretanto, a história não acaba aqui, e quatorze anos depois deste acontecido, no ano de 1995, o destino novamente aprontou uma das suas: eu fui contratada como Coordenadora Técnica daquela mesma Oficina Cultural. A Oficina Mazzaropi foi minha "casa" e a região do Brás "minha companheira" até o ano 2002. O "Mazza", como eu costumava chamá-lo, foi palco de fundo de grandes momentos da minha vida.
E vocês devem estar se perguntando o que aconteceu com a tal "conhecida" que me "arrastou" até o teatro. Bom, ela compareceu mais umas duas, ou três aulas, e depois sumiu, como um anjo que havia cumprido a sua missão.
E hoje, depois de 27 anos, tenho oportunidade de agradecer àquele anjo: obrigada Jacqueline, onde você estiver! Chego à conclusão que Freud não conseguiria explicar tantas coincidências na minha vida, mas garanto que Hamlet sim: "Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia.".
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