Sapato marrom e o milagre

Ela morava no prédio em frente á minha casa, na Aclimação. Era filha única, dona de um guarda roupa fabuloso que nos enchia de inveja. Não era minha amiga, mas gostava de me convidar para visitá-la, com o intuito de mostrar suas roupas, sapatos e objetos de enfeite, olhando bem no meu rosto para ver o efeito que tais coisas faziam para uma menina pobre como eu, que só possuía um sapato.

E o pior é que eu sentia mesmo a diferença das nossas posses. Meus pais eram pobres. Meu pai sempre foi muito trabalhador, mas o dinheiro não era suficiente para uma família com quatro pessoas. Minha mãe nem sonhava em trabalhar fora, isso não se fazia em famílias de bem naquele tempo. A mãe era ‘do lar’, lavando roupa no tanque, passando, costurando, tomando conta das crianças, e o pai, sim, era quem saía cedinho para ganhar o pão. Consequência de um salário só e bem pequeno era o meu único sapato marrom, que me servia para a escola, para brincar na rua, até para ir a igreja. Fiquei até com apelido de ‘sapato marrom’ ali na rua Nilo. Acho que até hoje alguém ainda se lembraria da menina do sapato marrom. Só quem teve um apelido assim como criança sabe a dor que isso significa.

E ainda vinha a Silvaninha abrindo seu largo guarda roupa para exibir dezenas de sapatinhos coloridos, saias e blusas combinando, vestidos que eu só vira antes na vitrine da Sears, ou seu quarto cheio de belezas, um abajur com pompons, uma caixinha cor de rosa cheia de fivelas e prendedores de cabelo,colarzinhos, brinquinhos…

Eu não possuía nada disso. Tinha três vestidos, três bonecas, um sapato já bem velhinho, muito consertado, meio caído para um lado em conseqüência do meu pé chato. Coisas bonitas enfeitando o quarto não tinha, mas meu pai jamais deixou que faltassem livros, os quais ele comprava quase que semanalmente, onde pudesse achá-los, novos se fossem baratos, mas também de segunda mão. Tínhamos livros em tudo quanto era canto da casa, eles foram o meu tesouro quando criança e só hoje sei que eram muito mais valiosos do que todos os tesouros da Silvaninha, pois tinham o poder de me transportar para outras terras e outras épocas e me fazerem conhecer o pensamento de homens e mulheres que de outro modo jamais conheceria.

Mas naquele tempo eu ainda não sabia disso da maneira que sei hoje, Eu queria ser como a Silvaninha, queria também ter vestidos vaporosos, sapatos com laços em cima, um quarto impressionante. Minha realidade era porem bem outra. O sapato marrom sempre me esperava á porta de casa.

Chegou o dia do aniversário da minha melhor amiga e minha mãe conseguiu comprar um vestido vermelho para que eu usasse na festa. Que felicidade ter aquele vestido! Porem, um probleminha… vou ter que usar o sapato marrom, não vou? O dinheiro não havia chegado para um sapato novo.

Três da tarde, eu prontinha para a festa. Vestido novo, cabelo lavado, pés no chão na sala de casa, tentando apagar o sapato marrom da minha cabeça. E aí, falei com Deus assim, do meu jeito de menina, pedindo socorro, pedindo em desespero um sapato, qualquer coisa que combinasse com o lindo vestido vermelho.

Quatro e pouco, hora de ir para a festa. Peguei o presentinho e fui me aproximando do sapato marrom, do inevitável sapato marrom. De repente, a campainha toca e minha tia Aurea entra pela casa á dentro como sempre, sem esperar que alguém abra a porta, carregando uma caixa. “Isso é pra você”, ela me diz. “Passei pelas Casas Eduardo e fiquei com muita vontade de comprar uma sandália para você”.

Abro a caixa, coração batendo forte. Dentro, uma sandália vermelha, do meu número, do meu gosto. Coloco nos pés e saio correndo, quase voando. Deus existe e Ele cuida de mim!

Essa foi a única vez que minha tia me deu um sapato. Outros presentes, sim, mas uma sandália e exatamente como eu queria, nunca mais.

Aquela foi de encomenda. Eu a encomendei de Deus.

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