Ressentimento

O 1º ano do grupo escolar fiz na escola Aristides de Castro na Rua Joaquim Floriano, no Itaim Bibi. Já do 2º ao 4º fiz no Grupo Escolar de Vila Olímpia, na época situado na Av. Santo Amaro, bem próximo ao Hospital São Luiz, quase esquina com a rua Dr. Sodré. Ao iniciarem as aulas do 4º ano, sentou-se ao meu lado na carteira dupla, um menino que já conhecia pelas andanças pelo bairro (Vila Nova Conceição). Seu nome, Orlando. Tinha um apelido inusitado, "pé de pato", em razão do tamanho dos seus pés serem desproporcional ao seu tamanho. Ficamos amigos, ele era legal. Antes da aula começar tinha o hábito de se mostrar cômico. Fazia gracejos, contava piadas em voz alta, fazendo toda a classe rir. Quando a professora entrava na classe (Dª Marieta), se calava. Nas aulas não era voltado para o estudo. Tinha alguma dificuldade no aprendizado. Invariavelmente me solicitava ajuda pelas suas incompreensões, principalmente na matemática.

Certa vez, para uma avaliação geral, a professora decidiu ditar um problema simples de matemática. Escolheu um objeto, citou algumas medidas e por fim termina com a tradicional pergunta que no caso era: "Qual é a sua largura?" (com referência ao objeto). Assim que o meu amigo de carteira terminou de escrever, vira-se para mim e em voz alta diz:

– "Qual é a sua largura, Capuano?"

A classe toda riu e a professora tentou se segurar, mas não conseguiu e acabou rindo também, dizendo em seguida:

– “Engraçadinho, faz o problema quieto.”

Próximo ao final do ano letivo, a diretora (Dona Geraldina) chamou a professora para uma pequena reunião. Dona Marieta, para não deixar a sala só com os alunos, chama uma servente (Dona Brasília), pedindo para observar o comportamento dos alunos e citar se houve um ou mais indisciplinados. Assim que a professora se ausentou da classe, baixou o espírito de Ronald Golias, aos 11 anos, no meu companheiro de carteira. Começou um festival de gracejos, piadas, gozações, enfim sempre fazendo toda classe rir. Vez ou outra contava algum gracejo bem baixinho, só para eu ouvir e, nessas circunstâncias, era só eu que ria. Em seguida voltava a falar alto e toda classe ria.

A sua performance cômica durou aproximadamente 30 minutos, quando a professora retorna da pequena reunião. Assim que entra na classe, a Dona Marieta pergunta à servente se alguém se comportou inadequadamente. A Dona Brasília apontou na minha direção. Tive um sobressalto. Sempre fui um aluno educado e além de educado, muito acanhado. Jamais teria coragem de cometer um ato de indisciplina. Fui encaminhado para a Diretoria. Chegando lá, a Dona Geraldina foi logo dizendo:

– “Ah, é você o macaquinho da classe?”

Não consegui responder nada. Não sabia o que esclarecer. Fiquei de cabeça baixa. Estava muito magoado e envergonhado. A Diretora sentindo a minha ingenuidade, disse:

– “Volta para a classe e procura se comportar.”

Esse fato criou em mim um ressentimento marcante que perdura em minha mente até hoje por nunca me conformar por ter sido advertido por um "crime" que não cometi. Entendo que em razão de que vez ou outra somente eu ria poderia ter servido como pretexto para a Dona Brasília escolher o "indisciplinado" mas isso nunca me consolou nem aliviou a minha mágoa.

Quanto ao meu amigo Orlando, nenhum ressentimento, pois seu inocente desempenho cômico, jamais teve a intenção de prejudicar nem a mim nem a ninguém, apenas alegrar-nos.

Almejo em breve, continuar esta história sob um novo título: "O indigente".