Percebendo o mundo

Quando se enxerga pouco, a vida tem um sabor diferente. As dúvidas são constantes, bem como a insegurança. São coisas crescentes, que não se vê o fim e, ao mesmo tempo, nasce alguma coisa especial: a teimosia.

E então eu nasci enxergando muito pouco, tudo era distante, complicado. Eu me sentia diferente, sem coragem para soltar o corpo, sem jeito de andar na rua, sem dar a mão para o pai ou para a mãe. Ah! Nem pensar em andar sem ser de mãos dadas. Um dia, saindo de casa com o meu pai e o meu irmão, na Rua Dom Duarte Leopoldo, não sei a razão, o meu pai dizia: "não quero dar a mão, não quero dar a mão". Com certeza foi um dos dias mais difíceis da minha infância.

Mas aí resolveram me levar ao oculista. Quanta sabedoria implícita nessa atitude! Um oculista! Confesso que eu não sabia o que era isso, mas achava tudo uma grande babaquice: as observações, as perguntas… Fiquei o tempo todo balançando a perna esquerda pra lá e pra cá e acabei tendo que tomar o meu primeiro calmante que, aliás, tinha gosto de dor de ouvido. Para confortar minha alma, a minha mãe me dava um golinho de soda Antarctica depois. Nunca mais tomei esse refrigerante, porque achei que ele também tinha gosto de dor de ouvido.

Chegou o grande dia – fomos à ótica encomendar os óculos! Foi um verdadeiro cerimonial. O meu pai, todo engravatado, bem barbeado como sempre, a minha mãe, bonita e perfumada, fomos à Ótica Especialista, na Rua 24 de Maio, no centro da cidade. Foi aí que um intrometido resolveu dar palpite na escolha da cor da armação. O meu pai logo disse que não era para dar palpite. Eu escolhi a armação: era branca, quadradinha. Sendo no início dos anos 60, a armação era pesada, daquelas de fazer feridas atrás das orelhas, pesar no nariz…, mas era uma necessidade imperiosa, como o ar, como a comida. Escolhi bem. Naquele momento, acredito que comecei a escolher as cores com as quais eu passaria a enxergar o mundo, com o meu jeito, mesmo pesando nas orelhas e no nariz.

Chegamos em casa. Lá fui assistir televisão. Era a TV Tupi que marcava presença nas casas. Sentei e assisti. Foi ali que pude ver, que comecei a amar e a respeitar o Mário Lago, na sua infinita sabedoria e postura diante da vida. Mário Lago foi reprovado várias vezes em Matemática, mas dizia que sabia mesmo era dividir. Bondoso Mário!

Até hoje quando vou a São Paulo gosto de passar em frente do prédio da antiga TV Tupi, uma das minhas primeiras possibilidades de ler o mundo à distância.

Mas a grande questão é o que veio depois: eu tinha que fazer os chamados exercícios de vista na Clínica Santa Luzia. A clínica ficava no centro, atrás do prédio do Mappin, e conheci ali o que era tortura psicológica. Aliás, complicado mesmo já era tomar o ônibus elétrico. Para mim, ainda pequena, o ônibus elétrico era uma coisa monstruosa, sempre cheio, com pessoas caladas indo para o trabalho. Um dia eu até vomitei lá dentro, tamanha era a tensão em estar me dirigindo para a clínica.

Era um local escuro, de pouquíssimas janelas, tudo cinza e sem vida. As crianças se adentravam numa sala escura e tínhamos que ficar olhando para um desenho na parede. A luz acendia e apagava interminavelmente. A assistente vinha periodicamente e nos aplicava um flash de luz nos nossos olhos… depois outro… depois outro… e víamos tudo em círculos concêntricos, mas o centro deveria ser o desenho na parede. Confesso que não foi nada agradável… sem contar a falta de educação daquelas atendentes…

Afinal, eu já estava ficando grande… pelo menos aos olhos dos meus pais… Fiz cinco anos e ganhei um presente de aniversário: um piano Schwartzmann novinho em folha. Compreendo o orgulho do meu pai, a satisfação da minha mãe. Afinal, era um piano que ninguém do nosso meio tinha. Eu, pequena e de óculos ainda novos, ao ver entrar aquela coisa imensa, marrom pela sala senti tanto medo, mas tanto, que precisei discutir o evento com a minha terapeuta trinta anos depois… Nossa Senhora da Achiropita! O que era aquilo? Pela vontade do meu pai, eu deveria tocar como o Pedrinho Mattar. Naquele tempo eu não sabia quem era o Pedrinho.

Passou o tempo e eu tive a felicidade de acompanhá-lo pela Rede Vida de Televisão no seu programa Pianíssimo. Em 2007 tive o desprazer de chorar a morte súbita do grande musicista.

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