Odiosa realidade

Gostaria de falar sobre amenidades, sobre infância, escolas, bailes de formatura, sobre famílias, enfim como as redações enviadas por quase todos, nos últimos anos. Assuntos saborosos que encantam todos e dão muito prazer a quem ler e comentar. Gostaria, mas não posso. Não devo ter e ser alegre, feliz, testemunhando uma avassaladora onda de violências, misérias, abandono de crianças que “teimam” em nascer no mais odioso, ingrato e selvagem ambiente que se possa imaginar. Nós, moradores do Parque Continental, Zona Oeste desta nossa querida cidade, eu principalmente, somos quase que partícipes do que vem se formando no extremo final da Av. Antonio de Souza Noschese, onde moro. Um fato aparentemente corriqueiro, mas degradante: o aumento inimaginável de crianças pelos escaninhos e tortuosas vias de acesso aos casebres, na mais imunda, pobre e miserável das condições humanas que já pude assistir.
 
É de cortar o coração ver elas brincando, rente ao asfalto onde passam carros, caminhões, basculantes que descarregam entulhos, lixo, imundices, pondo em risco a vida destas criaturas; de onde vieram esses pequenos seres? Das barrigas de garotas de, no máximo, 15 a 16 anos, em busca do enganoso e deprimente salário família. Habitando casebres de baixo do viaduto, na divisa com o município de Osasco, surgiram do nada, ocupando áreas nas vizinhanças de um grande terminal de gigantes caminhões, sobrevivem em condições… Que condições, que nada! Porque respiram! Isto por baixo do viaduto. Por cima, então, é outra visão antidiluviana: casebres montados rente ao asfalto, de uma pista de duas mãos, estreitas, tão apertada que, se alguma criança sair do casebre e der um passo, só um passo de criança, é estraçalhado por qualquer carro ou caminhão que vem a toda pela via.
 
Pequerruchos, lânguidos, olhos tristes, as meninas sempre mais sensíveis, desde criança, o instinto materno se manifesta nessa criaturinha tão meiga, cuidando de outro menor. Que quadro desolador, quanta tristeza, olhando e pensando, estas crianças poderiam ser meus filhos, netos, minhas sobrinhas, qual é a diferença? Por que nascem com tanto desencanto, tão desprotegidos? E depois, quando crescem (se chegam a isso) o que será da vida deles, quem lhes garante alguma proteção, alguma escola que ampare o futuro deles? Mas eles vão reaparecer, o aprendizado nas ruas, nas aglomerações de marginalizados de tudo que se entende como vida decente e segura, vão reaparecer, vão querer cobrar de nós, seus direitos usurpados ao nascerem.
 
Estas mesmas crianças, já crescidas, armadas por adultos, que também nasceram e cresceram como eles, vão roubar, assaltar, estuprar, bater, matar, violentar com ímpetos de elevadíssimo grau de crueldade, agindo com rancor impenetrável. Na busca de uma razão para tal procedimento, por parte de estudiosos do comportamento humano, tem enorme dificuldade em estabelecer a razão desse hediondo perfil, chegam a conclusões de que não adianta pesquisar porque não estão lidando com seres humanos.
 
De uma coisa podemos ter absoluta certeza, nossa parcela de culpa não é pequena. A ambição desenfreada da sociedade tem seus destemperos na desigualdade abissal dentro da própria sociedade.