No início do século XX, alguns botequins do bairro do Brás foram melhorando de aspecto e passaram a ser conhecidos por cantinas. A pioneira em São Paulo estava estabelecida na Avenida Rangel Pestana, esquina com Rua Monsenhor de Anacleto e, sem dúvida nenhuma, foi uma das mais afamadas.
Foi criada por um napolitano de Salerno chamado Cármino Corvino, mais conhecido por "Dom Carmeniélo", homem alto e forte que, à primeira vista, mais parecia um troglodita e, na verdade, era um poço de bondade e ternura.
Diariamente, pessoas pobres e maltrapilhas, principalmente negros, ali se dirigiam para pedir algo que comer. Dom Carmeniélo, sempre pronto para servir os mais necessitados, não deixava de minorar a fome dos que o procuravam. Tinha um "quê" especial com os negros.
Morava com a família nos fundos da cantina, onde tinha um grande quintal com vários cômodos, e sempre havia um livre para receber os conterrâneos nos casos de emergência.
Assim, a Cantina Dom Carmeniélo foi se tornando um ponto de encontro da colônia italiana no Brás. Ali era um centro de apoio aos imigrantes que chegavam a São Paulo e o local certo para se resolver os problemas. Os compatriotas que chegavam da Itália, bem como os que aqui já residiam, se por ventura estivessem em dificuldade, recebiam alojamento e alimento e, se necessário fosse, uma pequena quantia em dinheiro, enquanto esperavam a situação ser normalizada. Quanto ao pagamento, "pagavam como quisessem e como podiam".
A cantina de Dom Carmeniélo foi a responsável por introduzir a famosa pizza napolitana em São Paulo (quem sabe no Brasil) e a saborosa "mezzo a mezzo" feita de alice e muçarela, que também começaram a ser vendidas em tambores, que eram carregados nas costas por ambulantes italianos, sempre quentinhas e prontas para serem saboreadas.
Mais tarde, estes mesmos italianos começaram a oferecer, pelas ruas paulistanas, batatas assadas e castanhas, que assim anunciavam: "Patána assata au forno" (batata assada no forno), "U castanharo da festa".
Logo de manhã, quem passasse na esquina da Rangel Pestana com Monsenhor Anacleto podia ouvir um vibrante cantarolar de "Canzonetta Napolitana", entoada por Dom Carmeniélo, enquanto arrumava a cantina, juntamente com sua esposa e filha mais velha, Maria Felícia.
Por muitos anos, aquela cantina foi um recanto para os freqüentadores. Música, comida e bebida tornavam as noites mais alegres e ajudavam a matar as saudades da terra distante.
Depois de algumas "giara di vino", alguns dos muitos freqüentadores arriscavam teimosamente a imitar Caruso.
Nos dias de festas e feriados, ao cair da noite, ou num sábado, a cantina sempre estava lotada. Para resolver o problema dos freqüentadores que não achavam lugar para ficar, eram colocadas na calçada mesas e cadeiras para os clientes. Era quase uma regra. Tradicionais músicos da época faziam daquele local parada obrigatória. "Ettore Fieramosca", "Pietro Mascagni", "Luso-Brasileira", "Boheme", "Banda 8º Bersagliere", dentre outras, davam o tom para a animação. Executavam trechos de óperas e sempre acabavam nas "tarantellas". Todos – crianças, jovens e os mais idosos – faziam das calçadas um verdadeiro salão de baile. Era comum encontrar homem dançando com homem, o que provocava gostosas gargalhadas.
Com o sucesso destes divertimentos, o Brás viu se espalhar em cada esquina este tipo de reunião. Assim, as cantinas começaram a se proliferar por todo o bairro… E a alegria, também.
Enquanto uns dançavam, outros conversavam suas aventuras e outros remoíam suas saudades da terra distante.
Com isso, os laços de amizade tornavam-se mais fortes, a ponto de os vizinhos repreenderem filhos de outros na ausência dos pais. As crianças sempre acatavam as broncas e desculpavam-se na esperança de não verem contadas suas "artes" às mammas.
Assim ia a vida daqueles italianos. Um dia, porém, a cantina foi aberta pela filha Maria Felícia, mas não se ouvia o cantarolar das "Cazonettas Napolitanas" de Dom Carmeniélo. Como era de se esperar, a vizinhança foi tomar informações. Soube-se que o "Vecchio Napolitano" estava com fortes dores nas pernas e não podia estar no estabelecimento para recepcionar seus clientes.
Durante um bom tempo ficou afastado do estabelecimento e dos freqüentadores. Na sua ausência, a cantina começou a perder clientes. Alguns passaram a freqüentar a "Cantina do Giordano", outros a "Cantina Bella Napoli", instalada na esquina da Rangel Pestana com Rua Piratininga.
Os proprietários destas cantinas, a fim de oferecerem aos clientes vindos da cantina de Dom Carmeniélo o mesmo tratamento a que estavam acostumados, contratavam músicos para alegrar o ambiente.
Inicialmente, sua doença foi diagnosticada como reumatismo. Começou-se, então, um tratamento intensivo para aliviar as dores.
Já em uma cadeira de rodas, Dom Carmeniélo assistia sua cantina "minguar" sem poder fazer nada, mas nutrindo uma esperança de poder voltar em breve e fazer seu estabelecimento reviver seus áureos tempos.
Os amigos e familiares diziam que ele deveria procurar outros médicos para uma melhor avaliação, visto que o tratamento não vinha surtindo o efeito esperado. Relutante, resolveu seguir os conselhos e marcou novas consultas. Para surpresa de todos, o mal que o acometia não era reumatismo, e sim uma coagulação de sangue nas veias das pernas. Começou novo tratamento. Tarde demais.
Certo dia, com fortes dores e inchaço em umas das pernas, Dom Carmeniélo foi levado às pressas ao hospital. Foi diagnosticada uma trombose na perna direita. Várias foram as tentativas de reverter tal quadro. A única solução seria a amputação do membro, o que se deu no mesmo dia. Meses depois, novo exame e constatou-se que o mal tinha se alastrado. Fizeram a amputação da perna esquerda.
Com profunda melancolia e sabedor de que não mais retornaria às suas atividades, sentia-se inútil e tristonho. Começou a definhar e passou a sofrer do coração.
Dom Carmeniélo faleceu em 11 de fevereiro de 1943, deixando um grande número de amigos e um legado imensurável.
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