O velho do bode

Era velho há muito tempo.
Morava lá embaixo, numa das ruas batizadas com letra ou número, onde havia umas chácaras com quase nenhum morador e hoje é rua de tráfego intenso, de onde os moradores fogem.
Subia a ladeira pela manhã e descia à tarde com uma sacola, dessas de vime, sempre cheia.
Curiosidade e medo era o que sentíamos daquele homem que diziam tinha sido escravo.
Racionalmente impossível, mas acreditávamos.
Usava um cajado para sustentar-se e tocar um bode que ia sempre um pouco à frente com um cachorrinho de madame à procura de um poste.
O bode era tão magro quanto o dono.
Parava à porta de uma senhora, quase tão idosa quanto ele, que invariavelmente lhe servia um prato da comida do dia.
Ela pouco saía à rua e chegávamos a achar fosse uma bruxa.
Essa imaginação das crianças!
Ficava falando sozinho ou com o bode.
Às vezes parava perto das crianças que brincavam pela rua de terra e dizia alguma coisa ininteligível para nós entre sua falta total de dentes.
Um dia, encorajei-me e ousei me aproximar.
Contava a história dos bodes.
Em outras oportunidades que nos sentamos perto dele, pudemos perceber que era a única história que contava.
Era sua única propriedade e fonte de renda.
Ia de casa em casa perguntando se alguém precisava aparar o mato dos quintais.
Os bodes eram os cortadores de grama.
Revezava os bodes. Não me lembro quantos disse ter.
Recebia uns cruzeiros pelo serviço e alimentava o bode do dia.
Juntava o mato que capinava e levava para os demais que ficavam presos em casa.
Vendia o esterco dos bodes como adubo.
O progresso foi absorvendo o bairro.
As chácaras deram lugar a lotes menores.
Um dia chegou o asfalto.
O velho e os bodes desapareceram.
Ninguém falou se ele morreu ou se mudou.
Na época só serviu para aumentar o mistério.
Acho que foi meu primeiro contato com a linha da pobreza e a miséria.

e-mail do autor: [email protected]