O sangue de um Bignardi!

Quando meu avô, pai de minha mãe, faleceu eu tinha apenas seis anos.

Mas me lembro de histórias muito interessantes que me foram contadas e algumas pelas quais passei.

O terrível temperamento da família Bignardi era muito conhecido desde os parentes da Itália, onde até hoje são famosas as "bignardadas", também conhecidas como os "cinque minuti". São explosões de temperamento que deixam efeitos devastadores como uma bomba atômica, que podem ser desde objetos ou peças de mobiliário destruídos, gritarias, até perda total da lucidez, tudo isso seguido de um tremendo drama (daqueles que fazem os antigos filmes de Pelmex parecerem contos da carochinha) que pode durar dias ou alguns minutos.

Quando o vovô, que era na época um industrial já viúvo e beirando os setenta anos (portanto quase entrando na irresponsabilidade legal por senilidade), resolveu se casar pela segunda vez com Dona Luíza (depois explico porque até hoje a chamo assim); minha mãe teve uma bignardada e resolveu desacatá-lo não aceitando uma substituta para sua amada mãe (minha avó Maria). Minha avó, que durante o casamento sofrera muito nas mãos de meu avô, sendo praticamente uma parideira e doméstica para ele.

Por causa do segundo casamento, ele e minha mãe ficaram dois anos sem ser falar. Existe até um episódio em que minha mãe o ofendera mortalmente, tendo saído de casa ainda solteira para morar com minha tia Ofélia, já casada. Fato que deixou meu avô de cabelos em pé, uma vez que na época (década de 40) filhas só saíam de casa casadas. E foi nessa mesma época, num desses encontros familiares, ainda sem se falarem e dentro do carro de meu avô, ele se dirige ao motorista e diz: "Senhor, diga à minha filha que eu quero aquele aparelho de jantar Noritake, que comprei em um leilão, que está em poder dela e que me pertence". Antes que o motorista sequer respirasse, minha mãe se voltou para ele e disse: "Pois responda ao senhor meu pai que realmente o aparelho está comigo, pois guardo como lembrança de minha mãe, uma vez que ele deu meu piano para a sobrinha da segunda esposa. Mas a hora que ele quiser ele tem todo o direito de mandar retirar o aparelho de jantar, pois realmente lhe pertence, só que ele me conhece e sabe que irá receber um aparelho de caquinhos!".

Nem é preciso dizer que nunca mais meu avô tocou no assunto, pois caso o contrário acontecesse, minha mãe teria pulverizado a porcelana.

Mas voltando ao fato que estava relatando, o tempo lava tudo e eles voltaram a se falar. Minha mãe, sabendo que a madrasta se casara por interesses financeiros, nunca a perdoou. Os anos passaram, minha mãe se casou, eu nasci e quando tinha uns dois ou três anos vovô adoeceu.

Minha mãe costumava visitá-lo e por consequência eu também. Nessa época ele morava numa travessa da Rua Vergueiro, próximo ao Hospital Municipal. Lembro que eu tinha uns quatro anos, e saímos da Vila Mariana para fazer a visita. Minha mãe sequer dirigia uma palavra para Dona Luíza, fechou-se no quarto para conversar com meu avô. Eu, ainda pequeno (quatro anos) fui colocado sobre a mesa da cozinha e a madrasta de minha mãe ficou me enchendo de balas para que a chamasse de vovó.

A visita terminou, sem se despedir da madrasta minha mãe chamou um táxi e seguimos a caminho de casa. Ao entramos no veículo minha mãe notou que eu estava chupando uma bala, pediu que eu abrisse a boca, retirou a bala de minha língua e perguntou: "Quem te deu isso?". Ingenuamente respondi: "Foi a Vó Luiza". Em seguida repetiu a pergunta umas três vezes, e quando eu respondia que fora a Vó Luíza, ela dava um tapa em minha boca. Assim minha mãe desfechou três tapas com as costas da mão em minha boca de disse: "Ela não é sua avó! Sua avó chamava-se Maria e morreu em 1940. Você não tem avó e para você ela é Dona Luíza! E nem pense em chorar! Vamos, engula esse choro!!!". Com o último tapa dado, diante da batida das costas da mão, prensando meu lábio superior com meus dentes, o lábio se rompeu e o sangue correu. Minha mãe esfregou as costas da mão no sangue, e a exibiu para mim: "Está vendo isso aqui? É sangue. Por enquanto eu arranquei sangue da tua boca. Se você a chamar de avó mais uma vez, vou te arrancar os dentes. Entendeu?"

Percebendo que meus bolsos ainda estavam cheios de balas, ela as retirou jogando-as pela janela do veículo.

O taxista ficou chocado e perguntou se minha mãe estava louca, no que prontamente recebeu a seguinte resposta: "Meta-se em sua vida e continue dirigindo, estou educando meu filho e o senhor não tem nada a ver com isso".

Agora, vocês entendem porque passei a chamar a madrasta de minha mãe de Dona Luíza.

E com essa explico também o que eram as famosas "bignardadas".

O tempo passou, a vida continuou e hoje, distanciado do fato, posso perceber o amor e o respeito que minha mãe tinha pela mãe dela.

E apesar do gênio forte e do temperamento sinto o mesmo por minha mãe.

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