O sambista Giovanni

Foi numa daquelas aconchegantes cantinas do Bixiga. Salão estreito, com longo corredor e mesas nas laterais. Garrafas de vinho expostas em atraentes prateleiras, queijos, presuntos e salames pendurados aqui e ali, davam um toque europeu à casa. No fundo, um pequeno palco onde repousavam alguns instrumentos musicais sobre cadeiras ou encostados nas paredes à espera da mão amiga que os tirasse daquela tristeza e solidão.

Estava com dois velhos e queridos amigos. Subitamente uma voz e uma canção – Torna a Surriento. Eu estava de costas para o palco e como exercício, velho hábito, fiquei a imaginar o tipo físico do cantor, antes de encará-lo. Neste momento ele já cantava O Sole Mio, com ótima dicção e pronúncia perfeita. É um imigrante, pensei. Altura mediana, tendendo para calvície, face vermelha, "sanguínea", e abdome proeminente; deve ter uns cinqüenta anos, sentenciei convicto e me virei para conferir o meu "diagnóstico". Quase caí da cadeira.

Era um rapaz negro, um afro-descendente, se preferirem, de cabelos encaracolados, sorridente e muito simpático, trinta anos no máximo. Difícil de acreditar. Cantou ainda Luna Rossa, Mattinata e outras tradicionais canções italianas com absoluta correção e, em seguida, pausa para descanso. Não me contive. Fui ao seu encontro e depois dos cumprimentos habituais perguntei-lhe onde aprendera o idioma, que dominava tão bem, e a arte do canto. Explicou-me, rapidamente, que morara no Porto de Livorno durante cinco anos e trabalhara como garçom num daqueles navios que fazem a rota para a Sardenha. Aprendera o idioma de Dante e aperfeiçoara seu gosto pelo canto. Voltando ao Brasil, disse-me, não conseguira se libertar da magia e da sedução da música italiana. Aposentou definitivamente o sambista João e nas idas e vindas pelo azul do Mar Mediterrâneo nascera o agora chamado Giovanni, que encantava os freqüentadores da cantina com sua bela voz e seu primoroso repertório.

Dois anos depois voltei ao mesmo endereço e a casa, cujo nome não me lembro, fora fechada para minha tristeza e de tantos outros que tiveram a felicidade de ouvir o João, ou melhor, o brasileiríssimo Giovanni, que trocou o samba pelas inesquecíveis canções da velha Bota.

e-mail do autor: [email protected]