O papel e os incas

Antes que o mundo se acabe vou contar uma história. História antiga, da minha infância, quando não havia o "politicamente correto" e ecologia era uma coisa que só o Tom Jobim sabia explicar. Naquela época sem internet, o Google para encontrar prestadores de serviço e o Facebook para achar amigos desaparecidos eram respectivamente as Páginas Amarelas e as Listas Telefônicas. As Páginas Amarelas – onde meu pai e muitos outros conhecidos trabalharam – eram repletas de anúncios de qualquer coisa que se pudesse imaginar: açougues, vidraçarias, chaveiros, costureiras. Nas Listas Telefônicas constavam todos os assinantes de telefonia fixa, item raro e caro até os anos 1990. Ambas eram distribuídas no começo do ano por entregadores ávidos por uma caixinha.

Antonio Moreira da Silva era o nome, ou um dos nomes, com o maior número de homônimos naqueles imensos blocos de papel jornal. Um daqueles caras era meu avô, o Seu Moreira, o ser mais especial que conheci. Um nome comum para um homem incomum, ímpar na retidão, exclusivo no caráter, único na sinceridade. O Seu Moreira foi zelador de uns prédios comerciais no centro de São Paulo por mais de trinta anos. O apartamento dele, o único residencial naquele espigão de escritórios, ficava no 14º da Rua Sete de Abril, vizinho da antiga sede dos Diários Associados onde Chatô foi velado entre um Ticiano e um Renoir.

Passei incontáveis tardes e noites no terraço daquele arranha-céu (sim, para um garoto na década de 1970 as estrelas ficavam a centímetros das minhas mãos estendidas), olhando as pessoas lá embaixo como formiguinhas, vendo o sol partindo e as luzes da cidade ocupando seu vazio, exercitando meu pré-voyeurismo com binóculos que ganhara em um Natal, sonhando com um futuro diferente…

Era comum e essencial para que o mundo continuasse funcionando, que no último dia útil do mês, após o almoço, fossem atirados pelas janelas dos escritórios toneladas de papel picado. Valia tudo: jornal em tiras, serpentina, aparas, aquelas bolinhas dos perfuradores e inclusive retalhos das Listas Telefônicas e Páginas Amarelas que seriam substituídas em alguns dias. Nunca perdi uma festa daquela. Ia dormir na casa dos meus avôs na véspera e, logo cedo, começava minha jornada de picar papéis até que doessem as mãos.

Lá pelas tantas, as lentes do meu brinquedo traziam bem pertinho a intimidade das festas nos escritórios periféricos. Trocas de presentes, danças sem música, rolhas saltando das garrafas, abraços e sorrisos. Subitamente estourava um rojão anunciando que findara o expediente em alguma firma mais moderninha. Pronto, era o sinal que todos aguardavam para ocuparem as janelas e defenestrarem todo aquele papel colorido, para o desespero dos garis.

Era um espetáculo lindo, filmado para os telejornais, assunto dos matutinos do dia seguinte que, já com mania de estatísticas, calculavam a tonelagem de papel e o tempo gasto na limpeza. Mesmo impensável nos dias de hoje, tenho saudades daqueles tempos. Saudades daquele terraço, saudades da minha avó, saudades do Seu Moreira, saudades daquele menino picando papéis. Hoje seria um espetáculo grotesco, quem sabe o anúncio do fim dos tempos. Mas acho que os incas não conheciam o papel.

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