Preconceitos à parte, sempre achei que mulher não entende nada de futebol. Só se ligam no assunto em época de copa do mundo, quando é inevitável, todo mundo se liga mesmo. Daí elas até ensaiam alguns comentários, tipo "o técnico poderia escalar aquele jogador do Flamengo, bronzeado de sol, lindo, um deus grego". Ou "porque não colocam aquele goleiro com aquelas pernas maravilhosas" – lembram-se do Leão, esse mesmo que hoje é treinador.
Mas como toda regra tem suas exceções, as que entendem, entendem muito. Muito mais que muito marmanjo metido a técnico e que vive acompanhando o esporte pelo rádio e pela tevê e que perdem as suas noites de domingo nas inúmeras mesas redondas de futebol. Taí o exemplo da Soninha da ESPN. "Êta moça porreta", como diria o Nildo, porteiro do meu prédio e grande torcedor do Náutico de Recife. "Essa conhece e muccccho", completaria ele.
Mas naquele domingo preguiçoso, de 1983, depois da tradicional macarronada na casa do sogrão, pensei em me esticar no sofá me preparando para o típico e necessário momento da sesta. Ainda mais em se tratando de casa de espanhol, esse momento não pode faltar.
Meu sogro se acomodou no seu quarto, na sua cama. Nos outros quartos estavam as minhas cunhadas, de forma que sobrava apenas o sofá da sala. Mas, não só eu pensei na possibilidade de utilizá-lo. O outro genro do meu sogro, o meu concunhado (nome estranho, né não?) teve o mesmo pensamento. E foi mais rápido que eu. Filho da mãe! Açambarcou o sofá todinho só pra ele puxar o seu ronco vespertino. Maldito, preguiçosão!
Com todos os quartos da casa tomados e até o sofá ocupado por aquele folgadão, pra mim só me restou a cozinha e o quintal. Como lastimavelmente não tenho dotes culinários, devo admitir, a primeira opção deixei de lado. Portanto, acabei indo para o quintal. E tive de pensar em alguma coisa pra fazer naquela região da casa.
Como o dia estava quente e meu carro já por quinze dias não via água, assumi aquela atividade muito praticada por nós paulistanos nos fins de semana, diga-se de passagem, politicamente incorreta nos dias de hoje, com essa escassez e baixa reserva dos mananciais. Mas na época não tínhamos esse problema. Então me pus de calção e sandálias de borracha (Havaianas, quem sabe faturo unzinho no merchandising). Retirei a mangueira do quartinho de arrumação, que por sinal já houvera sido de empregada, em épocas de vacas gordas, e liguei-a à torneira do quintal.
Preparei um balde com detergente e peguei a cera polidora e alguns panos de chão, daqueles feitos com sacos de farinha vendidos nos cruzamentos. Lógico que escolhi os melhores (dois eram novos) sem que minha mulher e as cunhadas vissem, afinal meu carango merecia esse trato. Me pus assim à nobre tarefa paulistana dominical.
Com o barulho do jato d'água na carroceria, minha mulher que estava no quarto que dava para o quintal, despertou e desceu solidária. Se dispôs a me ajudar. Como a atividade não exigia outro auxiliar, dispensei-a pensando em poupar suas energias, que ela bem necessita para a rotina da dura luta da semana. Mas, não a poupei de me fazer um cafezinho, como de regra, sempre servido com alguma bolacha, de preferência champanhe. Mas podia até ser maizena, ou quem sabe, se o dia estiver mais favorável, vem até um bolinho de chocolate, daqueles de fazer a gente lamber os dedos.
Ela já a postos na cozinha, com a água no fogão e o pó de café no filtro (Melita – dá-lhe merchandising), ligou o rádio. Era quase 4 da tarde, hora do futebol começar. Pedi-lhe então que sintonizasse alguma estação que estivesse transmitindo o jogo. Era Santos e Palmeiras, nenhum dos dois meu time.
Talvez nem dez minutos passados, ela apareceu na porta da cozinha e me avisou que o café estava pronto. Acabei de enxaguar todo o carro e parei para tomar aquele merecido cafezinho. Duas xícaras acompanhadas pela bolacha (não teve o bolo desejado nesse domingo), retornei à fase final do trabalho. Bastava apenas secar o carro e poli-lo.
Peguei a politriz do meu concunhado (pelo menos pra isso ele serve), que continuava dormindo nababescamente (tipo babando na fronha), lógico sem ele saber, pois tinha um ciúme doido da ferramenta. Liguei-a na tomada da área de serviço e puxei o fio até o carro.
O rádio da cozinha continuava ligado no jogo, mas o barulho da politriz me impedia de ouvi-lo. Não me importei muito mesmo porque não era meu time jogando. Mas de qualquer forma queria saber o resultado do jogo do São Paulo, que, de tempo em tempo, a rádio informava.
Minha mulher permaneceu na cozinha ajeitando a louça do almoço.
De repente, apesar do barulho da politriz, ouvi o locutor gritar gol.
– Gooooooooooooooooooool, e é do… (o barulho da máquina me atrapalhou de ouvir o time).
Ato contínuo, perguntei meio ansioso (coisa de quem gosta de futebol) pra minha mulher de quem foi o gol.
Ela por um instante se ligou na transmissão pra me dizer e daí:
– É do Palmeiras.
– Quem marcou? – perguntei.
– Aragão! – ela respondeu.
– Quem? – tornei a perguntar, meio exclamado.
– Aragão – tornou a dizer.
– Aragão!? Magina, Aragão!?
– Aragão, mesmo! – tornou a frisar.
– Que é isso?! Se liga! Aragão é o juiz da partida! – expliquei pra ela meio impaciente.
– É, mas é isso que o homem (o locutor) falou!
– Ah, tá bom! – me resignei pela ignorância esportiva dela.
Fiquei pensando, como podia mulher não entender nada de futebol, e me convencendo de que se interessam cada vez menos por esse maravilhoso esporte. Por essa atividade humana que o Juca Kfouri diz ser a mais importante das coisas desimportantes. Como pode, meu Deus!
Bem, dia acabando, retornamos pra casa. Missão dominical cumprida. Visita ao sogro e carro lavadinho pra semana.
À noite, tevê ligada, pra variar no Fantástico (inda não tinha TV a cabo), tô deitadão no meu sofá, sem cunhado pra disputá-lo, tomando uma cervejinha, como requer o momento, me concentrando para mais uma semana de trabalho.
E lá vem o Léo Batista com o famigerado "Gols do Fantástico". Há quanto tempo vejo esse cara na telinha! Do tempo em que ele nem tingia o cabelo! E ele começa. Primeiro aquela infinidade de jogos sem importância: Arapiraca 2 x 0 ABC; em Fortaleza, Ferroviário 2 x 1 Fortaleza, daí por diante. Chegou então o bloco de gols dos times do Rio e na sequência os de São Paulo.
Como sempre, o Léo foi dando os resultados e fazendo ligeiros comentários sobre a jogada do gol (bola cruzada da direita para o arremate certeiro de Cesar etc). Na hora de falar do jogo "Santos e Palmeiras", ele iniciou com um comentário diferente:
– Fato único aconteceu no Estádio do Morumbi, no jogo "Santos e Palmeiras". O árbitro José Assis de Aragão marcou o gol do Palmeiras, empatando o jogo aos 42 minutos do segundo tempo. A bola cruzada da esquerda para a pequena área do Santos desviou no árbitro, tirando o goleiro da jogada.
Nunca tinha visto isso acontecer: um gol de juiz! Não sendo eu santista, até que achei engraçado.
E não é mesmo que minha mulher tinha razão?!
Grande Aragão! Juiz goleador do Campeonato Paulista de 1983.
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