Confesso que o dia mais abençoado para mim, nesse início de 2009, foi a visita ao Bixiga.
Preparei o almoço já com um quieto sorriso de contentamento; afinal, depois de lavar a louça, eu tomaria o ônibus, desceria na Avenida Paulista e, devagar, dando mais tempo à imaginação, desceria a Avenida Brigadeiro Luiz Antônio e chegaria, triunfante, à Rua 13 de Maio.
Tudo muito especial e lento. Eu preferi a lentidão para saborear a doçura do tempo, dos lugares, dos rostos no meio do caminho.
Enfim, cheguei a 13 de Maio. Há alguns anos não fazia esse trajeto e, assim, a vontade do abraço foi ficando cada vez maior e mais quente. Visitei aquele saudoso espaço olhando cada detalhe, cada casa. Senti falta de algumas das pizzarias tradicionais do bairro. Mas algumas lojas de antiguidade estavam ali, abertas e algumas até sisudas. Era uma segunda-feira de janeiro à tarde e o bairro estava um pouco sonolento.
Com enorme saudosismo entrei na Padaria Basilicata, – desde 1914 – e comprei um pedaço de queijo gorgonzola e do Caccio cavalo. Perguntei muito e saí dali feliz como nunca. Afinal, eu poderia trazer para casa um pouco dessas riquezas da culinária e da memória, saborear as saudades, esticando cada vez mais a minha viagem anual a São Paulo.
Atravessando a rua me deparei com um sobrado modesto, bonito, que muito lembrou a minha infância no bairro operário do Cambuci. Na porta, uma placa anunciando o espaço cultural: "Centro de Memória do Bixiga". Rapidamente toquei a campainha e um rapaz me atendeu de forma muito cortês. Eu disse a ele que estava visitando o bairro depois de um longo tempo e que gostaria de obter algumas informações sobre aquele Centro.
Prontamente o rapaz abriu a porta e me senti maravilhada com as fotos dispersas na parede. Logo chegou a mãe do rapaz, Solange, que, com muita consideração, me apresentou a proposta do Centro e me falou sobre o seu pai, o presidente do referido espaço.
Nunca a ignorância me foi tão cara! Há quase 23 anos fora daquela capital, eu guardava na memória e no coração as imagens do bairro, as festas, mas poucos nomes.
Solange, depois de me apresentar a casa, as imagens, objetos, me contou do seu pai, o sr. Walter Taverna. Junto com o amigo Armandinho Puglisi (que tão bem representou a alma do bairro), houve a idealização do bolo gigante para homenagear São Paulo a cada aniversário da megalópole. Em seguida, a idealização do pão gigante a cada dia 12 de outubro, em homenagem ao dia da criança, sem contar a maior pizza do mundo.
Num tempo em que se reclamar de falta de políticas públicas é conversa corrente, sobretudo para quem acredita que o ato de reclamar o exime de qualquer ação, foi o sr. Walter que criou o concurso de anões, dando maior visibilidade àqueles que são excluídos e têm uma imensa dificuldade em se colocar no mercado de trabalho. Depois do referido concurso, muitos deles arrumaram emprego, visto que a mídia cobriu o evento.
O sr. Walter veio conversar comigo, atendendo ao chamado da filha. Na realidade ele apenas atravessou a rua, visto que uma das suas cantinas fica bem defronte ao Centro da Memória.
O doce olhar do sr. Walter foi algo de especialmente divino e encantador. Ele me contou que foi amigo de Adoniran Barbosa, cujas fotos também estão ali expostas. Porém, não conheceu o Arnesto, que morava no Brás, e nem o Nicola, aquele que morava na Rua Major e que brigava e as "pizzas avuavam junto com as bracciola"… Foi ele que conferiu o título de cidadão do Bixiga ao compositor do "Trem das Onze" e também a Clementina de Jesus e outros nomes, sempre na tentativa de proporcionar a eles um espaço maior nos meios de comunicação. E, com certeza, deu certo.
O sr. Walter, na sua sabedoria, delicadeza e dedicação à vida, não poupou tempo em me atender. Até algumas considerações sobre a sua "cantina da Concetta". Ele me informou que a Concetta era uma antiga moradora do bairro e a qualquer fato que se pedisse algum segredo… era apenas para cinco minutos. O Bixiga inteiro acaba sabendo do ocorrido.
O Hino do Bixiga, composto por esse brilhante senhor, é uma das grandes manifestações de amor ao mais doce lugar dos italianos em São Paulo:
BIXIGA, amore mio
Foram os imigrantes italianos
Que construíram esse bairro de festas tradicionais
Misturando seu folclore
Com negros, compositores e artistas teatrais.
Suas indústrias e comércio
Foram crescendo a mais de mil
E nas cantinas só se ouvia
Viva o Bixiga!
Bixiga, amore mio (bis)
Você é o reduto histórico
Que a gente construiu
Na festa da Achiropita
A gente come, a gente bebe o que quiser.
Outra grande tradição
Oh! Oh! é a festa de São José
Sanfoneiro puxa o fole
O povo aplaude e diz no pé
Bixiga, amore mio (bis)
Você é o reduto histórico
Que a gente construiu.
Centro turístico italiano
Vem gente do estrangeiro
De todo o Brasil
Nos eventos culturais
Do Bixiga amore mio
Bixiga, amore mio (bis)
Você é o reduto histórico
Que a gente construiu.
Gostaria, humildemente, de prestar essa simples homenagem ao sr. Walter. Um senhor de olhar cativante e profundo, bem humorado, consciente da sua função histórica e dono de uma incrível visão de cidadania e civilidade. Parabéns, sr. Walter Taverna, pelo seu brilhantismo e que guarde sempre no peito o imenso amor pelo bairro, pelo nosso Bixiga, pelo primeiro grande espaço ocupado pelos italianos que ajudaram a fazer de São Paulo uma cidade belíssima, rica, cheia de contrastes fascinantes, culturalmente próspera.
Eu não poderia deixar de citá-lo mais uma vez:
"o melhor da vida é encontrar alguém que saiba fazer de um pequeno instante um grande evento".
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