I – No lugar mora a saudade. E lugar até mesmo de certa magia, no qual prevalece uma atmosfera de encanto, sem exagerar. Creio que o lugar exerça algum fascínio em muitos paulistanos nostálgicos, não só de bondes e ônibus: mas da própria São Paulo de outros tempos. Sim, ali mora a saudade.
II – O silêncio – digamos "de reverência" – daquele ambiente é de contraste com o intenso ruído, bem à porta, torrente de veículos que se atiram no asfalto da grande avenida: Cruzeiro do Sul, num tempo distante, caminho dos trilhos estreitos do trenzinho da Cantareira! – como não lembrar?
Museu dos Transportes Públicos Gaetano Ferolla, esse o tal lugar. Que, na verdade, desde que implantado, continua sendo o Museu da CMTC, não mudou. Era como se chamava. Por conta do colosso que a CMTC foi, meio século transportando São Paulo, o belo Museu – embora grande – é até pequeno (na dimensão e na coleção). Coleção impecavelmente restaurada. Fruto do elogiável trabalho de dedicação e carinho de ex-trabalhadores da Companhia. O patrono, senhor Ferolla, à frente.
Coleção fascinante: veículos, máquinas, equipamentos, peças e objetos; uniformes, mobiliário, documentos, miniaturas e maquetes. Bela galeria de quadros com fotografias as quais nos dão clara dimensão de quão diversa a frota ao longo do tempo, além de outros aspectos do transporte coletivo de Piratininga, no passado. O Museu é uma atração cultural e bom entretenimento. É o próprio presente do passado.
III – Onde a Ponte Pequena encontra o Canindé: Cruzeiro do Sul, 780 – esquina de Jorge Miranda. Ao lado do CMTC Clube. Instalações originariamente as da Escola Senai – CMTC.
Quem trabalhou no Senai, lembra: era uma das chamadas escolas "de isenção". E que, ao longo dos anos, preparou muita mão-de-obra especializada para oficinas e garagens da CMTC.
Olha, sem pretender diminuir um grãozinho de areia da importância e do valor desse belo Museu, entretanto – por questão de mero reconhecimento – há que registrar: como museu "de transportes" que se denomina, comete uma omissão. Deixa de lado segmentos outros – igualmente importantes como a CMTC: empresas de ônibus "particulares" (como se falava), pequenas e grandes. Contemporâneas da CMTC ou dela precursoras. Mas que ao lado da CMTC consolidaram a epopéia da história do transporte paulistano, não?
Inclusive – e principalmente – falta uma referência às que, encampadas em 1947, foram o próprio embrião da Municipal.
No belo Museu, só algumas fotos de ônibus antigos: o alvorecer de uma época, anos 20 e 30 – veículos rudimentares, pequenos, acanhados ainda, que "ousavam" desafiar, muitas vezes, o poderoso polvo canadense – pretendendo concorrer com bondes da Light, naquela São Paulo que ensaiava vir a ser um dia metrópole…
E mais: nos moldes do Museu, São Paulo também requer, por exemplo, uma outra coleção de memória. Seria um museu dos "trens de subúrbio", como eram denominados os atuais trens metropolitanos da CPTM. Outro segmento importantíssimo, igualmente esquecido nos trilhos do passado. Trens dos anos 30 aos 60 ou 70 quando – em comparação com a atual tecnologia eletrônica – aqueles trens eram da época do arco-e-flecha, então!
Tempo dos "subúrbios" da Central, Sorocabana, Santos-a-Jundiaí e da Cantareira.
"Transportes" que já pode até incluir – em termos de história – até mesmo o soberano metrô, claro! Mas é, inegavelmente, belo e emocionante o Museu do senhor Ferolla, claro que é!
IV – Adentremos. Para "extemporâneos" (sic) da CMTC, a mera curiosidade justifica a visita; a nós outros, contemporâneos dela, rever é reviver. Preencher o reservatório de emoções, cutucar a saudade. "Abrem-se as cortinas!" – do passado, como dizia o lendário locutor de futebol…
V – Daquela que foi a enorme frota da CMTC, sobrevivem três bondes, impecavelmente restaurados. Dois deles trabalharam até na Light. O bondinho aberto, carro nº. 1 da CMTC. Truque de quatro rodas, nove fileiras paralelas de bancos de madeira – duas caixas de armazenar areia, uma sob cada fileira de bancos em cada "frente", já que o bondinho tinha duas frentes (digamos). Pois era utilizado em linhas singelas. Todo aberto, sem para-brisas, o motorneiro saboreava integralmente a intempérie: dureza, hein! Anos 50, eu os via, moleque, nas linhas Mooca, Bresser ou Vila Prudente. Não mais rodavam na Vila Mariana, onde eu morava.
Um outro bonde da coleção, que nasceu Light também, é o belo camarão, no letreiro Santo Amaro, como não? Não me levem a mal os demais bondes, mas nenhum bonde foi mais a cara de São Paulo que os camarões! Que rolaram nos trilhos por uns 40 anos. Trabalhando duro! Curioso que, tanto as lâmpadas internas do salão como o "farol" (que não iluminava nada), eram lâmpadas de filamento, que nós usávamos em casa, não? E como camarões da CMTC é que, Santo Amaro, 1968, nossos bondes foram (in)devidamente morridos…
Já o terceiro bonde da coleção – o mais moderno da CMTC – esse veio importado, pela Municipalidade. Veio da Broadway. Isso em 1947, para a então recém-nascida CMTC. O lindo Gilda! Ou Centex, assim também chamado. Cá está o carro número 1789, todo vermelhão, orgulhoso! O certo é que Paulista e Angélica nunca mais tiveram o mesmo "charme" do tempo dos Gilda… Dizem até que os casarões e mansões daquelas avenidas – tristes e inconformados com o fim dos Gilda – desabaram, de melancolia: foi assim que brotaram os prediões… Terá sido? Até que faz sentido.
VI – Bondes paulistanos. "Doados" (sem o consentimento da população), desprezados e destruídos, os do Museu houveram que ser resgatados. Impecavelmente restaurados. Aquele bondinho nº. 1 esteve exposto, por muito tempo, na Estação do Brás; uma exceção. E completam a coleção dois outros carros. Linda réplica de bonde puxado (coitados!) por muares, antecessores dos elétricos da Light. Carro de cinco fileiras de bancos. Tração animal, coisa penosa.
Traz à mente, tempo de moleque, as carroças de coleta de lixo. Os muares patinando nos paralelepípedos. E levando chicotadas!
Na pracinha interna do Museu, um quase-bonde: vagonete de transportar areia, areia que os bondes despejavam nos trilhos nos dias de chuva, para encontrar o atrito.
Por que, então, não ter sido guardado também um bondinho "de serviço"? Lapso.
Fidelidade à memória é assim: no Memorial do Imigrante, um bonde – aberto, verde, de Santos. Movido por… Motor à gasolina! Enquanto que a CET de Santos (felizmente) restaura um Centex, ex-CMTC, para rodar… É claro, em Santos. Faltar-lhe-á, porém, uma Paulista e uma Angélica…
VII – E quanto aos ônibus do Museu? Se considerarmos os dos belos quadros de fotografias, serão muitos. Entretanto, expostos ao Museu, são apenas cinco. Infelizmente, nenhum é um Twin ou o TDH Coach – os mais bonitos da CMTC! Nem mesmo o gigantesco papa-fila. Tampouco o primeiro trólebus, que inaugurou o sistema há 22/04/1949, "conduzido" por Adhemar de Barros (um trólebus But inglês, dos quatro da frota).
Um dos ônibus do Museu é o Monika, da Nova CMTC de Faria Lima. O único exemplar dos vários cujas carrocerias a própria CMTC montou (na Santa Rita?).
Assim como fizera com os trólebus, começo dos anos 60, reaproveitando os chassis de vários modelos para produzir "novos" carros – nos quais fazia constar um letreiro, na parte traseira: "trólebus nacional fabricado pela CMTC". Pois os Monika nasceram quando reformados os Mercedes comprados em 1958, apresentados ao povo por Adhemar de Barros na sede da Prefeitura, no Ibirapuera.
Dois trólebus restaurados fazem companhia ao Monika, no amplo salão. O bonito, robusto e confortável trólebus americano – ACF-Brill – que veio já com dez anos de uso! De Denver (USA), importado em 1957, último equipamento importado para a CMTC.
Se não me engano, inauguraram a linha Mooca. Os trólebus, então, finalmente abrangiam um bairro de classe média, fabril. Pois antes, só bairros chiques, não?
Os últimos ACF-Brill rodaram, creio, até os anos 90. Sob pretexto de "modernizar", a CMTC mudou, quebrando com isso a simetria do belo desenho originário.
Um outro trólebus da coleção, ele é pioneiro: o primeiro trólebus nacional, paulistaníssimo! O esguio Grassi-Villares – originariamente de três portas – como os trólebus alemães que Jânio Quadros comprou em 1954.
Lembro bem quando o Grassi-Villares surgiu, eu tinha 11 anos. Lindão, cara de coach! Pudera: feito aqui sob licença, era decalcado de modelo americano de primeira linha! Os Grassi traziam, na frente, uma inscrição, comum a todos seus ônibus: "Produto Grassi". Tradição em transporte, paulistana. Os Grassi também rodaram em Araraquara.
Complementando a coleção do Museu, dois outros. Um monobloco dos anos 70, de uma porta só. Cuja tarifa valia por duas. Recordo deles na linha São Miguel Paulista.
E a excentricidade de certa administração, anos 80, que resultou num capricho financiado pelo dinheiro do contribuinte: o "Fofão" ou "Dose-dupla" – bichão de dois andares e de vida curta. É o carro nº 11000, de um vermelhão – não o da CMTC, provavelmente o da London Transport… Balançava sobre mecânica Scania e, exceto o protótipo, era montado em Guarulhos. "Double decker", entretanto sem a robustez, a beleza, a tradição e o conforto dos Route Master londrinos – que víamos e vemos nos filmes ingleses. O "Fofão", como peça do Museu, não deixa de ser atração.
Enfim: a bela coleção do Museu é admirável. Pelo menos, foi o que restou. Pálida mostra de um patrimônio público grandioso. Que perdure, pois.
Todos sabem: no chão paulistano dos ônibus, murchou a CMTC: brotou a SPTrans. A qual comanda o Museu. E como a memória – no caso, a dos ônibus – não tem ponto final, a bela coleção do Museu há que acompanhar os passos do tempo. Coisa que lá, então, não parece acontecer: estacionou.
VIII – À saída, não há como eu deixar de supor. Uma imaginação a mim, nostálgico daquele universo de trilhos, fios, rodas, pneus, ferramentas e lembranças… Uma suposição que, se não tenho como garantir, também não posso contradizer. A julgar pelo esmero com que preservado o Museu. Cuidadosamente instituído. Construído com amor. Então, sem medo de errar, é que suponho que deve ocorrer na quietude de madrugadas. Quando finalmente, por breve período, quieta a Cruzeiro do Sul (só percorrida pela alma do tramway). Então, os velhos trabalhadores daqueles bondes e ônibus – imagino – os ceemeteceanos, eles retornam. Da paz do firmamento. Para inspecionar. Avaliar e conferir. Para zelar pela coleção, belíssimo esforço de reconstituição.
Sim, voltam para proteger aquele pedação de memória nossa. É, devem retornar mesmo ao belo lugar. Para conjugar o verbo "contemplar": no presente do indicativo. Mas presente do passado. No tal lugar ela mora: a saudade.
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