Andando pelas ruas desta cidade é comum vermos pedintes em profusão. São meninos, são meninas, jovens e velhos sem outra opção a não ser esperar o que não se sabe. Cada um segue em sua sina se assim podemos chamar, atirados à sorte, que sorte? Quanta indignação.
Ao vê-los caminhando ou estendidos pelas calçadas – calçadas da vida, calçada de toda gente, calçada do indigente, os observo e fico a pensar de onde teriam vindo tantos indivíduos, como chegaram a esta situação e quantos deles tiveram uma família, um dia um lar ou quantos puderam frequentar um banco de escola? Quantos? Então me pergunto o que os teria levado a este estágio e os transformados em escória da sociedade. Não tenho resposta.
Como ficar sem a solução contraria o meu sentido de ser e para confortar o sentimento de cólera insisto em querer adivinhar quem teria sido aquela criatura, escolho aleatoriamente um infeliz e fico a imaginar a sua trajetória de vida até chegar à fase em que se encontra e traço um paralelo. Então em meus devaneios enumero dezenas de situações:
Vejo um homem vestindo uma surrada camiseta da seleção brasileira, se escorando em um par de muletas com pinta de que foi um jogador de futebol, mas hoje não marca mais gols, está impedido. Uma senhora portando velhos óculos sem lentes trajando trapos e carregando um amontoado de livros e revistas velhas junto ao peito tem o jeito de professora daquelas dedicadas. Pobre alma muito ensinou, pouco recebeu.
Observo ainda outros elementos, como um velho sentado no banco do jardim alimentando os pombos, com aspecto de apresentador de programa de humor, a praça é só dele. Ainda, a senhora mulambenta vestida de negro do outro lado da rua segurando um terço, que repetidamente olha para o céu, abaixa a cabeça e faz o sinal da cruz, voltando a olhar para o alto, vai ver foi uma freira e fez o voto da pobreza.
O interessante é que em todas essas minhas imaginações não consigo ver ninguém com aspectos de político, ainda não vislumbrei um miserável sequer.
Em uma das idas ao centro antigo, em um dia normal se é que possa existir normalidade em uma cidade tão anormal o acaso marcou presença. Seguia apressado pela Rua Direita em direção à Praça da Sé quando, repentinamente, uma figura esquelética saída sabe-se lá de onde com um boné branco encardido cobrindo uma vasta cabeleira, rosto abatido e barbas branqueadas pelo tempo, camiseta estampada com a foto de um famoso político para diante de mim e surpreendentemente chama pelo meu nome, não só pelo primeiro, mas completa com o sobrenome e até o apelido que eu tinha nos tempos de escola.
Evidentemente fiquei estupefato, até porque eu não estava portando um crachá que me identificasse e sem entender direito o que acontecia perguntei:
– Como sabe o meu nome, você me conhece?
Com voz rouca e ofegante, um hálito insuportável e me encarando:
– Claro! Citando o meu nome. – Fomos amigos de escola nos tempos do ginásio. Já se passaram mais de vinte anos e vejo que você pouco mudou. Não envelheceu como eu. – tosse muito e sem cerimônia vira-se para o lado e escarra uma grande quantidade de sangue que se espalha pelo chão.
Entre uma tosse e outra espontaneamente responde com um sorriso desdentado:
– Se me pagares um rango, eu lhe dou uma dica.
Acometido por uma sensação de desconforto tento abreviar o diálogo:
– Está bem, então fale logo que eu lhe pago o almoço.
Inesperadamente sou agarrado pelo homem que estende seus braços entrelaçando-os ao redor do meu pescoço e em um gesto de desespero pronuncia uma vez mais o meu nome e dá um agonizante suspiro. Antes que pudesse me desvencilhar da situação os seus membros se soltam e escorado ao meu corpo o cadáver lentamente escorrega até sucumbir aos meus pés batendo com a cabeça na dura calçada, provocando um ruído que ainda ecoa em meus ouvidos.
Olho para a minha camisa branca e uma lista vertical vermelha escura e gosmenta deixada pelo deslizamento do corpo se confunde com a gravata causando-me náuseas. Enquanto pessoas se aglomeram ao redor do corpo abro caminho e atônito procuro um local para me limpar.
Por mais que eu me esforce não consigo identificar aquela pessoa com a qual provavelmente convivi um dia, nem tampouco projetar um personagem. Lembro-me com nitidez do odor fétido e dos olhos negros e profundos a me fitarem como que pedindo por socorro.