Fiori Gigliotti, uma saudade

Nem parece que já estamos indo para três anos que Fiori Gigliotti viajou para o além. Sim, viajou. Ele não morreu. Os bons não morrem, ficam sempre imortalizados nas mentes de tantos quantos o conheceram, conviveram, ou apenas ouviram sua voz, empunhando um microfone. O microfone que ele, desde jovem, gostava de empunhar desde quando estava em Lins, vindo de sua Barra Bonita.<br> <br>Aqui em São Paulo, a partir de 1952, já era um contratado por emissora de nome. Fiori era o tipo de sujeito bom, e por isso pensava que todos também eram. Quando de sua estada na chefia do departamento de esportes da Rádio Bandeirantes, pensava sempre fazer o melhor para seus comandados, mas não sabia que pelas suas costas estavam alguns traidores que, quando de frente, conversavam, cumprimentavam-no.<br><br>Fiori gostava da bola. Tanto para descrever os caminhos dela nos pés de jogadores como também tentando encaminhá-la em seus pés quando jogava pelo Scratch do rádio, a partir do ano de 1964.<br>Jogando futebol, Fiori não era um virtuose da bola, mas o seu amor por ela nos fazia crer que ele era tão bom de bola como irradiando jogos pelos gramados por onde ela, a bola, rolava.<br><br>Quando o interior de São Paulo passou a ver os astros do microfone com a camisa listrada da Rádio Bandeirantes, emissora mais ouvida do esporte. E foi em 1964, na cidade de Brotas, que o Scratch do rádio deu início as suas atividades como um time de futebol, pertencente a Rádio Bandeirantes, lá que Fiori viu a bola bem pertinho em seus pés, ele que a via de uma boa distância na cabine de transmissão. Trabalhando, convivi com Fiori um bom tempo, assim como desfrutei de sua amizade fora do trabalho, e de sua família também.<br><br>Vi de perto sua grande capacidade de improvisação, da condição de transformar um texto comum numa obra prima de emocionar o mais frio ouvinte descuidado. Foi o que aconteceu uma vez que tinha que ser gravado um programa "Cantinho de Saudade" e a dificuldade para se encontrar um jogador que já tinha falecido. Muitos nomes eram lembrados por mim e por ele. Todos já homenageados. Andando pelo corredor, no segundo andar, vejo um jornal no chão com a manchete: “Morre no treino o jovem centro médio Tininho, do Guarani de Campinas”.<br><br>Pronto, o problema estava resolvido. Pegamos o recorte do jornal e, de improviso, ele fez um programa de emocionar. Eu, sentado a sua frente, não acreditava onde ele ia buscar tantas palavras para fazer um programa de quinze minutos com uma argumentação maravilhosa.<br><br>O nó amargurava minha garganta. Uma das coisas boas que vi como radialista.<br><br>Um dia ele foi guindado à chefia do departamento esportivo da rádio (1970), substituindo Dinamérico Aguiar. Coisa que ele nunca deveria nunca ter aceitado. Chefe não é para pessoas boas como o Fiori. Chefe é para pessoas sem muita sensibilidade, que sabem falar não, que gostam de dar ordens falando alto, para todo mundo ouvir. Que não sente muito a dor de seus comandados. Que pende mais para o patrão do que em seus subordinados.<br><br>Fiori não tinha esse perfil. Era doce, educado, sabia como lidar com as coisas e as dores de seus semelhantes. Muita lição deu Fiori, mesmo estando numa função que não era a sua praia.<br><br>Uma vez teve que chamar a minha atenção por uma coisa que eu não devia ter feito. Assim que entrei na sala repleta de colegas do esporte, plantão, locutores e repórteres, ele me chamou de lado, em tom bem baixo, que certamente só eu ouvia, deu-me um sabão que valeu a pena ouvir.<br><br>Quando do sério problema que teve o colega Luiz Augusto Maltoni em não aceitar um acordo para sair da rádio em 1971, quando de uma degola de pessoal, ele ficou por meses na geladeira, tirou o sossego do Fiori, que pouco ou nada podia fazer, porque era uma coisa que estava acima de suas possibilidades. Luiz Augusto Maltoni foi obrigado pelo ditador da rádio a escrever um comentário, que ele não podia ler e que seria lido, ou não, por outros, partiu o coração do "chefe" Fiori.<br> <br>Não podendo nada fazer, pois a "pinimba" estava entre Maltoni e o superintendente da rádio, cujos encontros eram por meio de ofensas e palavrões por parte da vítima da incúria de um prepotente administrador. Um dia Fiori rompeu o respeito à subordinação, autorizando Maltoni a deixar a sala onde era praticamente um refém de uma idiotice, mandando ele ir ao estádio do Morumbi para assistir São Paulo 0 x 2 Grêmio, dois gols de Dakota.<br><br>- Fiori, como posso escrever um comentário se não vejo o jogo? – disse Maltoni.<br><br>Foi a pergunta que lhe valeu a liberdade de sair da rádio para o estádio, coisa que era comum a ele desde que era repórter e depois comentarista, que segundo Murilo Leite, o superintendente, Maltoni era uma droga entre todos os comentaristas que a rádio tinha. <br><br>Mesmo com todo aquele ranço que havia entre empregado e empregador, chegou a um entendimento e a novela que eu ouvia em capítulos semanais aos sábados, quando lá eu estava no período vespertino. Na certa Fiori fez parte desse entendimento, e Maltoni continuou na emissora, mesmo com as restrições que o superintendente tinha. Fiori não sabia a força que tinha, dado a sua simplicidade. Mas com toda a bondade que Fiori exibia, tinha pelas suas costas a inveja de gente que queria o seu lugar de chefe, coisa que para Fiori pouco importava.<br><br>Numa sexta-feira o Scratch do rádio foi jogar no interior e Fiori resolveu esticar o sábado para pescar, outra coisa que adorava fazer. Seu nome estava relacionado para apresentar o programa Bola ao Ar, que ia ao ar ao meio dia. E naquele sábado Fiori estava ausente e dois "colegas" estavam ao microfone apresentando o programa. Quando no intervalo comercial, um disse para o outro: “Viu que belo chefe temos? Um irresponsável, vai jogar bola, depois estica o passeio para pescar, e nós aqui se danando. Você como secretário do esporte tem que fazer alguma coisa!”.<br><br>Fui para casa almoçar e, às 14 horas, retornei para cumprir o meu trabalho. Ao entrar na sala vejo o Zé Obis conversando com a esposa do Fiori:<br><br>- Eu já falei pra ele tomar cuidado, isso aqui é um ninho de cobras. Mas agora já aconteceu.<br><br>Sem saber o que estava acontecendo, perguntei o que era aquela conversa, e ele simplesmente me disse:<br><br>- Veja o que está escrito aí, naquele memorando.<br><br>Escrito e assinado por Murilo Leite, dizia que Fiori Giglioti estava suspenso por três dias, e que Flavio Araújo devia ser chamado para transmitir São Paulo x Portuguesa no dia seguinte. Caso Flavio não fosse encontrado, a ordem era chamar Alexandre Santos.<br><br>Quando eram 16 horas surge na rádio Flavio Araújo, bastante aborrecido com aquela situação. E, com sua ética, coçava a cabeça e dizia:<br><br>- O que o Fiori não vai pensar de mim sabendo que vou tomar seu lugar na transmissão de amanhã? <br><br>Aí eu entrei em ação e disse:<br><br>- Flavio, vai lá e não se preocupe, estou a par de toda essa história, isso sem entrar em pormenores.<br><br>Na segunda-feira Fiori pegou o memorando, e com ele foi até o prepotente dirigente da rádio e, simplesmente, pediu demissão. Aí o grande "administrador" mostrou toda a sua covardia e ficou o dito e escrito, por nada acontecido.<br><br>E quem sonhava em ser chefe teve que esperar mais um pouco. O slogan da rádio era "A família Bandeirantes"… O ruim da história é que lágrimas de crocodilo molham o caixão.<br><br>e-mail do autor: [email protected]