(Uma ré na curva do tempo)
A velha Mooca se desfaz. Está virando cinzas. Parou por uns anos e voltou a verticalizar-se. E o trânsito intenso expulsou crianças e adultos das ruas. Ando pelas imediações onde morava e identifico uma ou outra casa contemporânea dos meus tempos de criança, de juventude e mesmo de idade adulta. Como estará a "minha" rua, o "meu" quarteirão? Só há uma maneira de saber. Indo até lá. Longe por uma década espantei-me ao ver as mudanças que sofreram a rua e o quarteirão.
Desapareceram as casinhas térreas geminadas, os sobradões, as casas com jardins de rosas, onde em um canto sempre havia camélias ou um romanzeiro e portões encimados por arcos de madeira ou ferro, suportando primaveras floridas. Eram casas construídas em terrenos de 20m X 50m que, além do jardim, tinham um quintal imenso onde sempre havia lugar para uma hortinha, um galinheiro e um pé de goiaba ou ameixas. Foram-se as habitações coletivas (duas a três casas no mesmo terreno) e os cortiços, onde os imigrantes se espremiam em minúsculos quartos e cozinhas. Até a minha casa desapareceu, dando lugar a um alto edifício. O mesmo aconteceu com a maioria das habitações do quarteirão. Outras foram demolidas dando lugar a novas casas. Mas, como em um passeio desses a gente nunca está só, Dona Memória começa a me atiçar com seus "Veja!", "Olha!", "Recorda!", "Lembra!"…
E eu lembrei a rua quando tinha paralelepípedos (o asfalto veio somente em meados anos 60). No quarteirão ainda havia dois pedestais de lampiões de gás – ficaram lá, também, até meados dos anos 60, quando foram recolhidos. Lembrei a iluminação elétrica, com suas lâmpadas incandescentes em postes bem espaçados, o que obrigava a maioria dos moradores a manter uma luz no alto da fachada de suas casas, para compensar.
Lembrei de todas as casas, construídas entre os anos 10 e 30, em que o ocre predominava. Restaram duas dos anos 20, na esquina. Talvez ainda existam porque passaram de residências a bares. E a venda e os dois bares que eu conheci, no meio do quarteirão, já haviam desaparecido no tempo em que eu ainda morava lá.
Desapareceu o que restara do cimento que cobria a velha calçada, onde se podia ver nos remendos iniciais, datas e a marca das patas do Leão – um cachorrinho vira-latas que pertencia a D. Anunziata. Em um daqueles remendos estava o meu garrancho: Ciccio-1963. Estava lá, em 1998, quando me mudei.
Não é mais a minha rua, nem o meu quarteirão. Tudo limpo, asfalto e calçadas impecáveis; prédios com fachadas agradáveis, recuados do meio-fio, com jardins projetados. Tudo lindo, com "ares" de classe média alta… Mas na rua não há vida. Um ou outro transeunte.
De repente, a minha rua e o meu quarteirão renasceram como num passe de mágica. Era a saudade que se manifestava…
Desde as cinco horas da manhã a rua já estava acordada. Além do cheiro do café passado na hora, sentia-se o cheiro da comida. Eram as marmitas sendo preparadas. As geladeiras ainda eram um luxo. Tudo era feito na hora ou no dia.
Na calçada ainda estavam as latas de óleo ou de tinta que serviam como latas de lixo. Latas que o lixeiro esvaziava na madrugada.
Na rua, a vida também acordava. Lá vinha a velha perua Dodge, do seu Feliciano – o português da padaria, a entregar pães nos dois bares e nos domicílios. São inesquecíveis os seus pães doces e suas broas de milho. E, desde as seis horas, a rua era inundada pelo som das vozes dos homens e das mulheres que iam para o trabalho; pelo som dos rádios; falatórios em portões, falatório e bate-boca no cortiço, onde todos queriam usar o único banheiro ao mesmo tempo. Choro de crianças com fome, mulheres batendo panelas, gritando: "Olha a hora!".
E Diva, a cantora de ópera (era professora de canto). Nunca soube o seu verdadeiro nome. Creio que ninguém na rua sabia ou se lembrava mais. Era "la Diva". E Diva todas as manhãs "aquecia" a sua voz cantando árias da Tosca ou da Traviata. Quando ela cantava a Ave Maria, conseguia fazer até a criança mais traquinas e malcriada emudecer e dizer como os adultos: "Stupendo!".
Crianças ocupavam a rua por turnos. Era por causa das aulas do Grupo Escolar: primeira turma, das oito as onze; segunda turma, das onze às duas; terceira turma, das duas às cinco. Pelas seis da tarde, todos os "anjinhos" estavam unidos, fazendo mil estripulias pela rua…
E os visitantes habituais iam chegando. Lá vinha o Giaccomo verdureiro, com a sua carrocinha, a oferecer verduras e legumes; e vinha o seu Farid, o turco vendedor de tecidos e que, na verdade, não era turco, e sim Judeu Sefarad. Logo atrás, vinha o "amolador" de facas e tesouras, tocando a sua flautinha de pan. Eram tantos os visitantes… O Totó (Antonio) vendendo seus "biglietto" de loteria – um "mirréise u gasparino"! A D. Assunta, que fazia "pasta" como ninguém – mas só por encomenda -, vinha fazer as entregas de Cannelloni, Rondelli,Cappelletti, Lasagne. Seu Arrigo vinha vender Foccazza e Risollis, feitos por sua mulher (deliciosos). "Nonno" Deodatto vendia doces. Vinha com seu cestinho de vime, gritando pela rua: Sfogliatelle! Taralli! Cannollis! Adultos e crianças "babavam" quando ele chegava.
Também apareciam lá na rua alguns meninos, com tabuleiros presos por uma tira ao pescoço. Eles vinham vender pirulito, quebra-queixos; amendoins torrados, salgado ou doce; cocadas pretas ou brancas.
Cinco da manhã, o dia-a-dia do povo da minha rua começava…
Seu Molina abria a venda, uns quinze minutos mais cedo, pois sempre havia alguém precisando de algo para completar a marmita.
Seu Alcides e o Seu Carlino, desde as cinco, estavam com seus bares abertos, vendendo o pão e leite e os "pingados" aos solteiros que iam para o trabalho, ou então uma cachacinha para "esquentar o frio".
Nunziata, às sete, abria a porta de sua casa à espera de alguém para um corte de cabelo, uma tintura, ou para fazer as unhas e um pouco de fofoca.
Otilia, a costureira, estava também, desde as sete da manhã, com as janelas abertas, pedalando a máquina de costura.
Dona Mercedes, entre a arrumação da casa e a lavagem da roupa, lia para algumas "clientes" a "buenadicha" no Tarô. Dizia-se cigana de Andaluzia, mas na verdade era das Ilhas Canárias. Ela era muito boa nesse mister, pois sempre tinha muita gente a procurá-la. E Dona Mercedes também fazia "magias", tudo de acordo com o Livro de São Cipriano…
Menos pretensiosa, D. Margherita benzedeira, quase centenária, benzia caxumba, malocchio (mau-olhado), quebranto, bucho virado, cobreiro. E recitava rezas para curar ou aliviar doenças do corpo e da alma. Homeopata intuitiva, fazia chás, garrafadas e mezinhas.
E lá ia o seu Nicola, fazer sua banca de jogo de bicho em uma mesinha do bar do Carlino. Volta e meia uma radiopatrulha parava em frente ao bar e dois guardas desciam e entravam. Saíam logo depois de fazerem "uma fézinha"…
E na rua sempre aparecia um ou outro vigarista a aproveitar-se da ingenuidade e solidariedade napolitana.
Alguns vendedores napolitanos compravam mercadorias na Rua 25 de Março, no Brás ou Bom Retiro, e vinham para as ruas "napolitanas" vender o seu "peixe". Vinham com uma história de "imigrante que, sem encontrar um emprego, está se desfazendo das coisas que trouxe da Itália". Contavam com lágrimas nos olhos "que a penúria era tanta que estava vendendo as peças de enxoval da pobre esposa." Abriam uma mala grande que ainda continha os selos do navio, da alfândega de saída e de entrada no país e mostravam colchas adamascadas, da Toscana, jogos de sala, cama e mesa em puro linho, bordados em "punto d'Assisi" ou adornados com rendas da Bélgica. Desfiavam o seu drama e decadência em dialeto napolitano, atiçando a saudade e o sentimento de solidariedade das napolitanas sensíveis. Vendiam tudo. À vista. E nunca mais voltavam. E pelas etiquetas que eles nem se davam ao trabalho de tirar da mercadoria, descobria-se a farsa (as peças que eles mostravam abertas não tinham etiquetas). Às vezes esses "mascalzoni" eram reconhecidos em outras ruas das imediações, usando da mesma cantilena. E aí, o "pau comia" feio. E levavam vassouradas, pedradas e xingos. Corriam para nunca mais voltar à região.
E a rua tinha os seus pecados e segredos: Imaginem vocês! O Elio e a Menna vivendo juntos há vinte anos e não são casados! Isso é imoral! E a Leda? Você soube? Dizia que passava a noite cuidando de uma senhora idosa e doente, lá na Consolação. E a verdade, ela "cuidava" de muitos rapazes, num puteiro em Santa Ifigênia. E a Betina, com aquela carinha de santa, que dizia trabalhar das seis à meia-noite em uma tecelagem do Brás, é na verdade uma cadela! É "táxi-girl" de um "Dancing", lá na Avenida Ipiranga…
Ah! A minha rua! Nela, eu, crianças brincando , blasfemando e cantando.
Os meninos: Pula-carniça, futebol, andas ou muletas, bola de gude, jogo de botão, carrinho de rolimã, pipa, "capuscetta", iô-iô, pião. Meninas: Pular corda, amarelinha e caracol, diabolô, passa-anel, bambolê e as cirandas infinitas: "Cirandeiro, cirandeiro, oh! A pedra do seu anel, brilha mais do que o Sol…".
Meninas brincavam de "Estátua", meninos brincavam de "Como está, fica!"; meninas cantavam "Senhora dona Sancha, coberta de ouro e prata…"; meninos recitavam "Vaca amarela, cagou na panela. Quem falar primeiro, come toda a bosta dela…" Meninos e meninas brincavam de esconde-esconde: "Balança caixão! Balança você! Dá um tapa na bunda e vai se esconder!…".
E as "Advinhas"? Advinha! Advinha! Advinha o quê? Uma coisa amarela na noite se vê! E onde é que está? No Céu está e no mar também! O que é? O que é? Já sei, sei, sei! Então diz o que é! É a Luaaaaaa!…
Desde o amanhecer até as dez da noite, a rua vibrava com os sons da vida. Sons que eram interrompidos pelo sono. Mas sempre havia um outro dia. Um amanhã que poderia parecer como tantos outros passados, mas que não era. Sempre havia algo novo e, por mais insignificante que fosse, era um acontecimento. Vivia-se a vida no aconchego e no calor humano…
E a "minha" rua vai se desvanecendo. As vozes do passado se calam e o silêncio quebra a curva do tempo.
Hoje, a rua não é mais minha. É só mais uma entre as tantas desta cidade. Uma rua de prédios lindos com jardins projetados, cercados por grades de ferro-batido encimadas por uma cerca elétrica e câmeras de segurança. Ali, a gente não pode mais ir entrando na casa dos outros, gritando: "Com licença!".
A rua de agora se fechou em fortaleza. Da "minha" rua ficaram apenas os ecos do passado…
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