Diamantes, um Chibiu de 5 pontos, Juquinha Bode…

Tudo o que será dito ou revelado a seguir é verdade verdadeira e eu, Joaquim Ignácio, quero que um raio caia sobre minha cabeça e também quero morrer cego e arreganhado se estiver mentindo.
 
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Era o fim de ano em 1947, quando nós, meus pais e eu, viajamos para a cidadezinha, então chamada Patrocínio de Sapucahy, para assistirmos ao casamento do Sr. Octacilio Prates de Abreu (Fiinho) com a Srta. Maria Daisy Murta Garcia, futuros pais da mulher, que muitas décadas mais tarde, viria a ser minha esposa e mãe de meus filhos, D. Odete.
 
Foi uma viagem longa e demorada, feita de trem pela Paulista até Campinas e, em seguida, pela Mogyana até a cidade de Franca, lá em cima do mapa, no nordeste de São Paulo e a poucos quilômetros da divisa com Minas Gerais. Naqueles bons tempos em que viajar era uma aventura complicada, mas muito prazerosa. Mesmo com as fagulhas lançadas pelas locomotivas à lenha, mesmo com o desconforto dos bancos de madeira da 2ª classe e da hipnótica monotonia dos barulhos dos vagões rodando sobre os trilhos: tedéco, tedéco – tedéco, tedéco – tedéco, tedéco…
 
De Franca à Patrocínio de Sapucahy, permeava uma distância de 3 léguas, distância que era vencida por uma Jardineira que fazia a linha Franca/Itirapuã, ida e volta, uma vez por dia e apenas em dia sem chuva, com a estrada seca; se chovesse era impossível transitar pela estrada de terra, a não ser à pé ou à cavalo. Felizmente, naquela ocasião, conseguimos chegar à cidade sem grandes percalços, cobertos de poeira e com as roupas com pontos de queimadura, feitos pelas fagulhas do trem. A viagem durou quase 18 cansativas horas, mas as coisas eram assim naqueles tempos, fazer o que, né!?
 
Claro que assistimos ao casamento, claro que me empapucei pelas quitandas feitas pela Sinhá Laurinda (que Deus a tenha recebido no céu dos cativos), pelo doce de leite, pelos figos em calda e cristalizados, pela paçoca de amendoim, pelo curau, pela pamonha, com as frutas do pomar, pêssegos, jabuticabas, abil, pinha. Claro que brinquei bastante com as crianças da família, as correrias, o trepar nas árvores, o brincar nas margens do rio Sapucahy, coisa nova para mim, criado num cortiço do Bexiga – casas, concreto, paralelepípedos, bondes, postes de metal pintados de preto, falta d'água, sorvete de palito de coco e de groselha, racionamento de gêneros alimentícios, racionamento de luz, apenas o rádio e gibis como distração que “malemá” preenchiam uma parte do tédio que era minha vida de criança…
 
Os familiares da minha futura sogra, D. Daisy, eram trabalhadores braçais, lavradores, cantareiros, calceteiros e, principalmente, garimpeiros. A cidade de Patrocínio de Sapucahy, então, sobrevivia de alguma agricultura em pequena escala, plantio e cultivo de café, uma incipiente indústria de laticínios com alcance local e da garimpagem de diamantes e de pedras semipreciosas, como topázios, turmalinas e algum carbonado.
 
Foi naquela ocasião que eu ouvi, pela primeira vez, pessoas falando em pedras, discutindo valores, e as vi pesando quilates em delicadas “balancinhas” que cabiam no bolso de uma camisa. Miniaturas tão bonitas que poderiam facilmente passar por jóias. 
 
Portanto, vem desse tempo passado o meu interesse pela faiscação e garimpo de diamantes. Evidentemente não me diria garimpeiro ou prospectador, mas no fim de minha adolescência e parte de minha juventude, costumava passar férias em Franca na casa de meus padrinhos ou em Patrocínio Paulista (a cidade mudara de nome, vai entender…) e, vez ou outra, por não ter nada para fazer, eu ia para a beira do rio Sapucahy bater peneira, lavar cascalho e tentar a sorte que, diga-se de passagem, nunca veio e nem me deu as caras. 
 
Para ser sincero, garimpo é um trabalho que cobre todos os graus de periculosidade, de insalubridade e de penosidade normatizados pela CLT, e só loucos, desesperados, sonhadores ou pessoas extremamente teimosas e ambiciosas, que não tem nada a perder, é que fazem do garimpo uma profissão.
 
Eu, urbanóide, citadino, burguês, quando muito lavava cascalho, era durante uma ou duas horas e só! O restante do dia eu usava uma das peneiras para pescar cascudos, uma abundância de peixes, dava até para pescar com as mãos, lembrando a toada de Joubert de Carvalho: "Não quero outra vida, pescando no rio de Jereré; lá tem peixe bom, tem siri patola de dar com pé…”
 
 
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Estava na beira do rio, vendo aquele bando de loucos peneirando, cavando, derrubando barrancos, movendo matacões dentro d'água, peneirando, peneirando, trazendo cascalho do leito do rio em pesadíssimos sacos de couro, os corotes.
 
– Inácio, qué aprendê a achá o brilhante no meio dos cascaio? – o Quincas me perguntou com um sorriso, quase uma risada esculachada.
 
– Quero, uai!
 
– Intão tá bão! Bâmo principiá – me disse o Quincas, ao mesmo tempo em que procurava alguma coisa numa capanga, um estojo todo enfeitado feito de casca de jatobá…
 
– Achei! Tá vendo essa pedrinha?
 
– Tô! Parece um caco de vidro dos bem pequenos, é vidro, né?…
 
– Parece mas não é, Inácio. É um chibiu, um diamantinho de uns 5 pontos e ocê vai achar ele pra mim de novo – e jogou o tal diamantinho num monte de cascalho, e ainda remexeu o monte com uma pá, o desgraçado.
 
A garimpagem artesanal dos diamantes é feita com um jogo de peneiras, três ou quatro, com diferentes tamanhos de malhas. Normalmente a procura do brilhante é feita com o despejo da peneira de malha mais fina, que ninguém é tão otimista a ponto de esperar encontrar um diamante de 500 gramas ou 2500 quilates, por exemplo. Ao se virar a peneira de borco, vê-se um circulo perfeito de pequenas pedras, grãos de areia e uma última camada de “grãos de arroz”, os tais diamantes negros ou carbonados; no centro e, bem no centro desse centro, se é que me entendem, fica o diamante, brilhando como uma estrela na escuridão da noite…
 
Levei horas para encontrar o “chibiuzinho”, os braços doendo, a roupa suja e enxarcada pela correnteza da água barrenta do Sapucahy, mas aprendi, e aprendi também que garimpo não tinha sido feito para mim, como já disse, um imberbe urbanoide, citadino e burguês, e haja sinônimos pra me definir.
 
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Eu conheci Juquinha Bode numa véspera de Ano Novo, lá por 1955 ou 1956, por aí. Juquinha Bode era magarefe no abatedouro e frigorífico de Sapucahy, fazia o abate das alimárias, bois, carneiros, cabritos. Terminado o seu sangrento expediente, gostava de parar nos botecos para tomar uns “arrupião” e bater um papinho com os conhecidos e não-conhecidos. A conversa era sempre sobre o futebol da região:
 
– Ceis acha qui a Francana vai consigui muntá um time bão prêsse ano? Co Gerominho jogando a bola qui tá jogâno, bem qui elis pudia vim aqui em Sapucahy prá vê eli jogá, ceis num acha? – e nem esperava resposta – Bota mais um arrupião, caneco cheio, prá mim moiá as palavra… que eu careço de ir… minha mãe já deve di tá esperâno ca bóia – e seguia seu caminho, de botequim em botequim, os pés ficando cada vez mais redondos.
 
Uma tarde, saindo do serviço, Juca Bode reparou que havia um maquinário pesado na beira da estrada, junto à centenária ponte de madeira, sobre o rio Sapucahy, portal de entrada da cidade. Pergunta daqui, pergunta dali, ficou sabendo da construção de uma ponte de concreto e posterior desmantelamento da ponte antiga. Semanas depois, os trabalhos começaram com tapumes, andaimes, desvio parcial do rio, perfuratrizes abrindo furos para fundações, material do leito do rio, toneladas e mais toneladas de cascalho, sendo acumulado em uma área que, tecnicamente, seria o acostamento da via.
 
Diz a lenda que, aos domingos, em seu dia de folga, Juquinha Bode ia bater peneira na beira do rio pra lavar o cascalho que ficava na beira da estrada. Passava a tarde toda carregando cascalho em baldes para a beira d'água. Os amigos falavam para ele parar com aquele delírio, com aquela estupidez: "Para com isso, Juca, domingo é dia prá descansar… fica aí fuçando, fuçando… esse remanso 'tá sendo 'cavucado' desde o tempo dos bandeirante… aí 'num' dá mais nada…”
 
Um dia, o Juca fechou a porta de casa, tramelou a cerca e sumiu. Ficou quase um ano desaparecido e quando voltou estava diferente. Estava rindo feito besta, a troco de nada, só prá exibir os dentes de dentaduras novinhas, "em cima e embaixo" e usando pijamas e calçando chinelos dentro de casa, na rua, na missa, nos botequins, no jardim à noite, em velórios de conhecidos morridos e sempre com muito dinheiro no bolso. 
 
Ele sempre sonhara em usar pijama e chinelos, tinha dezenas deles, um para cada ocasião… O dinheiro? Conseguira vendendo os diamantes que garimpara no atulho da obra da ponte. O capangueiro que comprara as pedras pagou um valor baixíssimo por eles, mas mesmo assim, para Juca era dinheiro à beça, e ele pode realizar todos os seus sonhos, que eram poucos e simples. 
 
Conheceu São Paulo, conheceu o mar (trouxe diversas garrafas de água do mar que "deu de presente" para os amigos de boteco), dormiu num hotel, foi ver os aviões subir e descer no “campo de inviação das congonha”, comeu maçãs. Quando o dinheiro finalmente acabou, retornou à antiga rotina, voltou a ser magarefe, era um especialista, foi recontratado apalavrado pelo dono do abatedouro. Quando lhe perguntavam como gastara o dinheiro dos diamantes ele respondia:
 
– Bão', o dinhêro eu gasti cum bibida e cas muierada, o resto eu gasti à toa…
 
Uma noite, bebuço, tropeçou no meio fio da calçada, caiu, bateu a cabeça; ficou em coma muitos dias e morreu na Santa Casa de Franca. A igreja de Patrocínio fez uma missa de corpo presente e providenciou o seu sepultamento na terra do cemitério da cidade que é cheia de cascalho; logo, eu acredito que Juca Bode esteja em casa, “Juca in the sky with diamonds…”
 
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Repito que tudo o que falei é verdade verdadeira, e quero morrer cego e arreganhado se estiver mentindo, juro por Deus…