Quando desci as escadas da editora e entrei no boteco, vi que as coisas já estavam mal paradas.
O Zé estava lá com a turma, e já havia tomado uminha. Mas, para ele, isto já era suficiente.
O ano era 1960, e eu desenhava historias em quadrinhos para a Editora Outubro.
Não ia sempre lá; com mais três amigos, desenhávamos nossas páginas no Martinelli, e íamos, a pé, até a Rua da Mooca, onde ficava a editora, apenas nos dias de entrega dos trabalhos e, coisa feliz, nos de pagamento.
A Outubro era num prédio baixo, que ainda existe, nas proximidades da Rua Luís Gama. Em cima, os escritórios, onde nossos desenhos eram julgados por Cortez e Penteado, sócios e também artistas. No térreo, a gráfica – naqueles tempos as editoras, mesmo pequenas, tinham suas próprias impressoras! Ficávamos olhando, cobiçosos, as operárias, surgindo dentre as máquinas.
E o sócio encarregado das oficinas era o Zé. Filho de lituanos, seu sobrenome era tão incomum quanto ele mesmo. Dois metros de altura, louro e olhos azuis, era magérrimo e muito tímido, de pouquíssimo falar.
Era um anjo de gentileza. Isto quando não tomava a primeira.
E no dia de pagamento, a editora praticamente parava para festejar.
Como escapar da primeira, e de outras que se seguiam?
Quase todos colaboradores apareciam, até os desenhistas cariocas, a eles se ajuntavam os sócios, e toca todo mundo para o boteco. Claro que havia muitos por ali. Lembro-me de dois, um na esquina da Rua Itapira – ainda lá está! – onde os locais juntavam-se ao pessoal, um deles levando um violão e cantando lindamente "Não Chora", como um Silvio Caldas.
O outro ficava pegado à editora, e foi neste que eu entrei, quando o Zé tinha tomado a tal primeira. Aí era tarde: ele não tinha mínima condição de beber nada. Ao primeiro gole se transformava, como um Mr. Hyde. Lá se ia toda sua delicadeza. Tornava-se imediatamente um monstro, um gigante furioso, e queria beber sempre mais.
Os sócios tentavam dissuadi-lo, mas acho que pouco adiantava: não ficava sossegado enquanto não armava uma boa briga. Sou de pouco beber, e não apreciava aquele triste espetáculo, que não sei como terminava – Cortez e Penteado, bem falantes e bons copos, no fim davam um jeitinho nele.
Mas, nem sempre. Certa vez, desafiou um time inteiro de futebol que baixou ali, e no dia seguinte estava muito machucado. Parece que o tal time não estava para brincadeiras, perdeu a esportiva e desceu-lhe a botina.
Uns anos depois, a editora fechou, eu saí do mundo dos quadrinhos para a publicidade e vi o Zé só mais uma vez, num ônibus, com a noiva. Foi em frente a Caetano de Campos, e nos cumprimentamos de longe. Ele parecia perfeitamente sóbrio.
São Paulo mudava rapidamente, com ela minha vida, os amigos, os conhecidos.
Soube que mais tarde ele montou sua própria editora, e sobreviveu ainda um tempo a seus antigos sócios, mas não sei se deu um jeito na bebida.
Agora tudo isto é passado, apenas mais uma história de boteco entre tantos e tantos milhões, que cada um poderia contar.
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