Biblioteca Mário de Andrade. Foto: Sylvia Masini.

Caso dos livros

O tempo e a vida se arrastavam na lentidão mórbida naqueles anos 70. Para nós era assim. Os dias andavam com a força minguante dos velhos, que haviam “perdido o bonde e a esperança… e voltavam pálidos para casa”.
 
E era mesmo a poesia do Drummond que me fazia respirar um pouco, me convidava a estar no mundo, a ser participante, mesmo com a seriedade e a dureza de interpretar as coisas da vida nada convenientes para uma garota em início de adolescência.
 
Impossível descrever a importância do fato, mas a minha mãe descobriu o Círculo do Livro. 
 
Novidade na época. Para nós, uma surpresa única, indescritível, indecifrável. Alguma coisa estaria acontecendo naquele sobrado do Cambuci. 
 
Livros que haveriam de abrir janelas deixando o sol entrar com todo o seu vigor, energia e vibração. Sim, a primavera poderia entrar sem pedir nenhuma licença. O perfume industrializado contido nas folhas brancas poderia me levar a viagens jamais imaginadas por uma simples filha de um bairro de tradição operária, de ruas de paralelepípedo e com eventual e tensa falta d’água. 
 
Com uma revista mensal cuidadosamente depositada numa maleta preta, um funcionário da editora fazia a divulgação dos seus valiosos produtos, finamente encadernados. Uma capa de acetato tratava de proteger a capa dura. Feita a escolha, a entrega do livro ocorria no mês seguinte. O mesmo funcionário traria o livro escolhido, mediante o pagamento previamente anunciado na revista.
 
E os livros iam chegando. Datas especiais aquelas! Para mim, de tanta magia e encantamento, eu os pegava e me sentia tão pequena diante daquelas preciosidades que mal me atrevia a manusear aquelas páginas.
 
Só com o tempo fui me adaptando, me sentindo digna de ler alguma coisa. E eu via a minha mãe lendo, um livro atrás do outro, muitas vezes mexendo a comida nas panelas e a outra mão ocupada com a conquista. A minha avó lia também. E conversavam sobre o conteúdo daquelas riquezas. Era a vida se sentando junto, no cantinho do sofá, interessada em participar desse tipo de discurso.
 
E eu ia viajando, tirando os pés do chão pela primeira vez. Eu ia imaginando o tamanho do mundo, a dimensão dos sentimentos, me projetando para o alto das copas das árvores mais robustas e me entregando ao prazer da descoberta. Era como se eu, pendurada nas copas, pudesse abraçar o mundo com um carinho exagerado, profundamente humano, sentindo o frescor das folhas verdes e na esperança de o mundo ser bem menos cruel e arrogante.
 
Os livros!
 
E eu fui aprendendo a cuidar deles como joias de inestimável valor, como companhias em dias lindos ou de completa solidão. Livros para serem lidos na cadeira de balanço ou no balançar do metrô.
 
A tia Norma também se associou ao Círculo. Lia e comentava também conosco com muita avidez sobre cada um, sobre cada personagem. Fazia as observações mais sinceras e com total intensidade. E gostava de deixar registradas as suas opiniões logo na primeira página e sempre com a mesma advertência: “Depois de lê-lo é favor devolvê-lo, sim?????” 
 
Quando ela colocava esse “sim????” no final é porque ela já estava enraivecida com os calotes.
 
E ela colocava a fitinha de marcação de páginas em cada um dos livros e eu não sabia como ela conseguia tal façanha. Eu achava a fitinha meio mágica. Só a minha madrinha mesmo para inventar uma coisa assim tão prática e instigante!
 
Herdei vários livros dela ao longo da vida. Com minhas saudades, resolvi ler o que ela havia escrito na primeira página do “Arquipélago Gulag”. Lá estava: "Pertence a Norma D. Fogaça – maio 1975 – Depois de ler este livro, só digo isto: Brasil como te amo!"
 
Ah! Norminha, sempre fazendo das suas…