Cara de buldogue

Tudo quanto é cena da Paulistânia dos anos de 40 a 60 me desperta interesse e satisfação. De uma São Paulo de Piratininga que para mim (e para quantos?) terá sido a mais bela de todas as São Paulo. Jornais de arquivo, documentários da TV, filmes de Primo Carbonari, literatura e principalmente fotografias e iconografia me fascina.

Nesse conteúdo, estão os transportes coletivos: bondes, ônibus, trens, caminhões… Tudo o que roda, ou rodava, pelos cantos da Cidade. Desse modo, como que o site também pudesse vir a ser uma imensa garagem da nostalgia, uma pitada do passado. Certos ônibus que também caracterizaram a paisagem paulistana, mesmo que por poucos anos.

Desses ônibus tenho alguma recordação, da época de moleque, pois eles saíram das ruas no final dos anos 50, quase todos eles. Era um bichão barulhento, motorzão de dois tempos, a diesel e de rugido (ronco?) bem peculiar. Quem ouvisse não esqueceria. Chassi e motor, americanos, de caminhão, que como incontáveis outros, viraram ônibus.

Cujos primeiros devem ter vindo por volta de 1941, não sei quando. Primeiro montados com carroceria Grassi, para a empresa "Lapa"; depois do fim da Guerra, a própria General Motors do Brasil de São Caetano do Sul, montou-lhes a carroceria (1948), dos muitos que entregou à CMTC (e a outras operadoras).

E nas poucas vezes em que eu ia a Santos, o bonde passando pelo maravilhoso cais do porto, de guindastes e trens, podia ver desses caminhões, como carretas que eram e que subiam a Anchieta. “SANCAP” era a transportadora. Sem contar outros lindos “caminhõezões” de calotas cromadas.

Esclareceu, certa vez, o senhor Ferolla, do Museu: aqueles (para a época) mastodontes tinham o bloco do motor não como "de costume", horizontais em relação ao chassi. Tinham-no verticalmente! De modo que resultava numa frente "recuada", o motor quase dentro da boleia; frente alta, bojuda: cara de buldogue!

Buldogue, mas com estatura de elefante… Pára-lamas largos, faróis rentes ao pára-choque, inconfundíveis. Imponente o caminhão. Pois o ônibus assim derivado era denominado de GMC-ADF: que diabos esse "ADF"? Não descobri. Eu os vi o suficiente para algumas vezes neles andar – e adorar! Barulhentos e velozes, dignos dos nomes GM e GMC.

Minha memória garante que nas feiras-livres das manhãs de domingo em Moema, eu os via na linha Cidade Ademar, vermelhões, da CMTC. Eram carros que a CMTC acabou por herdar, em 1947, da "Lapa". Para meus lados de Vila Mariana, só um ou outro ADF, na linha 109. Raro. Mas no começo de 60, eu fazendo entregas, ainda viajei num remanescente. Do Alto da Mooca. Que ia até o fim da Rua Oratório.

Ou outros azuis, da linha Vila Zelina (via Paes de Barros), da empresa cujos ônibus tinham como marca registrada, as rodas de cor laranja, a CTP: Companhia Transportadora Paulista, de cobradores com bilhetinhos… Cartões postais e documentários dos anos 40 mostram esses buldogues por sobre o Viaduto do Chá, na São João ou na Patriarca que eram os da "Lapa".

Até mesmo em Santos houve deles, no começo dos 50: o Expresso Brasileiro os utilizou em várias linhas urbanas, como assegura "A Tribuna". Eram "enormes" se comparados aos pequenos ônibus Ford e Chevrolet, montados sobre chassis de caminhão. O "CMTC Clube" mantinha um buldogue desses.

Que transportava outra tradição paulistana, extinta: a Banda Musical da CMTC! Mas, qual!? Por que haveria que estar guardado o último ADF? Como um cão buldogue que o dono relegasse ao relento, o velho ônibus com cara de cão morreu… Em 1960, informam uma revistinha, chassis de vários ADF – guardados que houveram sido por robustos que eram – foram reaproveitados pela CMTC.

Novamente a Grassi montou-lhes carroceria. E por mais alguns breves anos, agora com motor Fenemê, os carros iam para o Alto da Lapa ou subiam e desciam a Avenida Pompéia: eu neles, muitas vezes, sem saber que eram ex-buldogues… Por fim, se eu encontrasse a lâmpada de Aladim, pediria um daqueles buldogues. Para botá-lo, bonitão, no Museu dos Transportes. Que deles só tem fotos…

E-mail do autor: [email protected]