A canção “Eu Sou Boy” do roqueiro Kid Vinil, sucesso nos anos 80/90, é, na minha opinião, a mais perfeita tradução do que era ser office boy em São Paulo àquela época. A propósito, eu também, quando adolescente, fui office boy nas ruas de Sampa (e quem não foi?).
Meu primeiro emprego foi… Não, não foi boy. Assinei a carteira de trabalho pela primeira vez mesmo foi como auxiliar de estoque em uma fabriqueta de calçados na Rua São Joaquim, perto do Colégio Roosevelt, onde então estudava. Mas como a dupla de boys da firma dava nó em pingo d’água, quase sempre sobrava para o moleque do estoque, no caso, este que vos escreve, fazer a via-sacra dos cartórios, bancos, correio etc.
Aprendi a mutante geografia da cidade sacolejando em ônibus lotados, nos vagões do trem e do metrô, seguindo as coordenadas consultadas em velhos guias de rua. E também porque se quem tem boca vai a Roma, Tucuruvi e Vila Esperança eram café pequeno.
Naquele tempo, em vez da febre atual dos vídeo games, havia os fliperamas e os pebolins. Nas esquinas da cidade as luzes e os sons das máquinas de pinball enfeitiçavam e adestravam a molecada. Uns eram verdadeiros craques, capazes de, com uma única ficha, acumular milhares de créditos e jogar uma tarde inteira. A mim, me satisfazia bater uma, duas fichas. Preferia o futebol de fim de semana na beira do lago do Ibirapuera, ou três sessões de cinema pelo preço de uma nos cines decadentes do Centro Velho.
Aquilo era a perdição dos office boys. Fosse na Praça da Liberdade ou na Sé, fosse no Largo do Paissandu ou no Anhangabaú, era entrar nesses parques de diversão para trombar com colegas, muitos dos quais não sabíamos sequer o nome, mas que eram figurinhas carimbadas com quem cruzávamos na lida diária de perambular pela cidade gastando nossos velhos tênis, com a inseparável pasta A-Z debaixo do braço.
Na hora que batia a fome de leão, uma coxinha, um misto-quente ou um churrasquinho grego, acompanhado de uma tubaína, nocauteavam em um round quem nos fustigava.
E havia ainda o jogo de cintura que se adquiria rápido na escola das ruas, até por uma questão de sobrevivência. Duvido quem não tenha dado pinote saindo pela porta traseira do busão (que na época era a porta de entrada) para não pagar passagem e descolar uns trocos vendendo os passes.
Certa vez, voltando da tortura burocrática dos cartórios, vi o jornalista e escritor Lourenço Diaféria ali na Praça João Mendes. Até então eu nunca tinha visto em carne e osso escritor algum. Para mim, estavam todos, até os Imortais da Academia, mortos. Eram seres abstratos, privilegiados, distantes, inacessíveis. E de repente, ali estava o grande Diaféria, o mesmo que anos depois escreveria “Papéis Íntimos de um Ex-Boy Assumido”, baseado, suponho, em sua própria experiência de office boy. Decerto o escriba andava aquele fim de tarde à caça de inspiração para as pérolas que são as suas belas crônicas. Enquanto ele pinçava os pequenos detalhes quase imperceptíveis do cotidiano, eu o observava de longe, incógnito. Lembro que girei 365 graus, dei uma panorâmica, como se quisesse ver além com os olhos do renomado cronista. E que também, na semana seguinte, andei a comprar as edições do saudoso Diário Popular na esperança de identificar nas crônicas publicadas algo ou alguém que tivesse visto naquele instante mágico.
Sou, assumo, um ex-office boy. Com muito orgulho. E cada calçada desta cidade de São Paulo, principalmente aquelas com mosaicos estilizados com o mapa do Estado, tem no seu desgaste a marca dos meus pés, calçados nos velhos tênis de guerra, é claro.