Bexiga em que vivi, um Bexiga real

Tenho lido muitas narrativas sobre o Bexiga aqui neste. São declarações de amor pelo bairro, nomes de pessoas aparentemente ilustres que, evidentemente, fizeram parte da vida dos autores e tudo fazendo acreditar que a Bela Vista era o paraíso sobre a terra. Mas as coisas eram assim mesmo, da maneira como são narradas? Será que eram?<br>Eu morei na rua Ruy Barbosa, 468, esquina com a rua Fortaleza, num cortiço que alugava quartos, até 1951, quando nos mudamos para a Vila Clementino, para uma casa de verdade que tinha um quintal enorme e cheio de árvores além de uma nascente de água cristalina. Pela primeira vez tive meu próprio quarto, pela primeira vez pude ter um cachorro, o Tenente, filho da Lelêta, uma cadela extremamente promíscua que pertencia a uma vizinha.<br>Mas voltemos ao Bexiga real, que é este meu intuito. Meu pai mudou-se para o bairro em 1930, vindo de um lugarejo do interior do Estado chamado Conceição do Monte Alegre. Lutou na Revolução de 32, foi lixeiro, pedreiro, carregador de sacolas de madames, entre outros serviços absolutamente braçais, já naqueles "felizes tempos" não havia empregos disponíveis para a juventude, assim como não os há hoje em dia. Sobreviveu precariamente até entrar para o serviço público estadual como telegrafista da radiopatrulha, o que terminou por afastá-lo do bairro e da cidade de São Paulo. Só voltou, já casado, em 1944, minha mãe com 22, 23 anos e eu com meus 4 mal vividos. Lógico que fomos morar no Bexiga que era um bairro de locações baratas, cheio de vilas e cortiços, muita pobreza digna e alguns poucos remediados que viviam na rua dos Ingleses, na Major Diogo e na parte da 13 de Maio que ia da Fortaleza até a Pça. Osvaldo Cruz, já no bairro do Paraíso. Lembro-me perfeitamente do frio, das pessoas que morriam asfixiadas por monóxido de carbono proveniente de fogões de carvão acesos nos quartos, lembro-me da falta de água, da falta de carvão para cozinhar, lembro-me da falta de comida, das filas para tudo, do racionamento na época da guerra, do preconceito contra negros e brancos pobres que eram maioria no bairro, lembro-me da falta de vagas nas escolas, lembro-me do choro nos velórios por morte pela tuberculose, sarampo e outras doenças, os velórios feitos nos quartos de cortiços e nos porões infectos do bairro.<br>As deslocações para o centro eram feitas a pé – idas e vindas -, as passagens do bonde custando 200 réis, o preço de meio filão de pão. Portanto, entre tomar o bonde e comer, melhor comer. Nas sextas-feiras havia a feira livre na rua Fortaleza, dia em que se comia um pouco melhor pois se aproveitava a hora da xepa para se comprar alguns produtos à tostão.<br>Peço minhas desculpas por escrever esse texto tão chato e negativo; é óbvio que eu gostaria de ter morado neste bairro de sonho das narrações dos outros autores, teria sido maravilhoso sem dúvida, mas por mais que me esforce não vejo paralelo entre o "meu Bexiga" e o Bexiga dos outros, e bem que eu queria!<br>Ah, sim! Ia me esquecendo: meu pai morreu em 1960, aos 48 anos de idade e terminou seus dias como encarregado do serviço de rádio do Palácio do Governo e chefe da estação de rádio da Vasp no aeroporto de Congonhas.<br>Falava fluentemente 3 idiomas e estudou até o fim de sua vida. Era conhecido pelos telegrafistas do Brasil todo como "o Professor". Apesar de tudo, sempre gostou do Bexiga, malgrado todas as dificuldades pelas quais passamos no bairro.<br><br>e-mail do autor: [email protected]