Amor

É comum considerar certos sentimentos como propriedade exclusiva desse animal, que após longa evolução pôs-se de pé, fabricou utensílios, aprendeu a falar e a se comunicar, a escrever, tornou-se racional e depois aprendeu a arte de fazer artefatos de destruição, e a dar imenso valor a isso, e em seguida passou a empregá-los fervorosa e orgulhosamente. Esse ser intitula-se "Homo sapiens".

No entanto, as pessoas da mesma categoria que, ao contrário, preferem viver o lado bom da vida ao lado da compreensão, da caridade, do amor, enfim, muito sensíveis, percebem que certos animais e até coisas inanimadas possuem algum sentimento. Estas pessoas são tratadas por aquelas como piegas, ingênuas, atrasadas, ignorantes ou por outras designações não cabíveis em publicações sérias. Dentre estas últimas, existem as que acreditam que as cidades têm sentimentos. Eu me incluo nesse rol. Vou lembrar que nossa São Paulo tem sentimentos, especificamente amor.

Desde a chegada dos descobridores "evoluídos" e "civilizados" ela sentiu profundamente e chorou copiosamente quando presenciou a chacina feita contra seus filhos, os indefesos índios. Os que sobraram ou viraram escravos ou, além disso, viciados, depois, indolentes e a partir daí considerados imprestáveis. Suas belas matas devastadas e suas entranhas aviltadas. Chorou pela primeira vez, mas por amor e por ser ainda muito jovem acreditou que o futuro seria promissor e seus habitantes seriam respeitáveis e respeitados. Sorriu quando, no Pateo do Collegio, deu-se início a sua existência. Sorriria novamente, mais tarde, quando foi restaurada aquela região e mantida como um local como que sagrado até hoje.

Foi crescendo com o passar dos séculos, cada vez mais amando seus filhos. Assistiu embevecida, antegozando o progresso futuro a chegada de grande quantidade de imigrantes vindo da Europa. Mais tarde, chorou de alegria com a vinda dos orientais, que no futuro colaborariam com a ampliação de sua grandeza. Passou a amar profundamente a todos eles ao perceber que se davam bem e que se respeitavam e colaboravam entre si e que os problemas de adaptação, aos poucos, iam se resolvendo.

Hoje, vê com bons olhos a chegada de imigrantes provindos agora da própria América Latina. Na década de 30, do século passado, apesar do evidente progresso, um ditador surgiu e prejudicou seus filhos, impôs restrições, impediu a liberdade individual e da imprensa e, pior, matou inúmeros filhos seus, além de manter muitos em sórdidas prisões. Outros foram considerados "desaparecidos". Isso por que seus filhos lutavam por democracia e por decência. É conhecida a sigla MMDC, fruto dessa matança. Ela ficará por todo o sempre como a recordação da grandeza e coragem de seus filhos.

Na década de 60, novamente outra maldita e violenta ditadura voltou a sacrificar seus filhos, calar a imprensa, da mesma maneira que a anterior impôs à força dirigente conivente, sem consultar os eleitores. Matou muita gente. Um deles, caso famoso, foi encontrado morto em sua cela da prisão e dito suicida! Talvez as décadas mais tristes de sua história. Novamente os "desaparecidos", o que parece ser característico das ditaduras. No entanto, nada fez contra esses carniceiros, por uma razão bastante simples: já disse que ela é uma cidade que vive do amor e pelo amor. Naqueles dolorosos momentos, lembrou-se de suas irmãs europeias destruídas por duas terríveis guerras mundiais, e do seu sofrimento infinitamente maior. Culminou com a desgraça levada ao oriente quando duas cidades, Hiroshima e Nagasaki, foram dizimadas, incluindo grande parte de sua população, graças ao orgulho, prepotência e insensibilidade do inimigo cruel. Sentiu isso tudo e pensou: “Meus filhos sofreram, mas o que dizer daquelas cidades todas? E continuou a amar acima de tudo e de todos.

Naquela época, nas primeiras décadas do século passado da primeira ditadura, seu sentimento atingiu ao máximo do sofrimento. De seus olhos e vindo direto de seu imenso coração, devido ao sentimento de dor, em forma de gotículas minúsculas, verteram lágrimas e seus filhos acostumaram a chamá-las de garoa. Talvez por isso que ao sentir garoa envolvendo a cidade nos vinha um sentimento de nostalgia. Mas, nem tudo se constituiu de tristezas. São Paulo ficou e fica sempre amorosamente agradecida pelos presentes que seus filhos lhe dão e certamente sempre darão. Presentes que a colocam em um nível privilegiado entre suas irmãs e, além de embelezá-la, colocam-na em situação elevada frente à cultura e ao entretenimento.

Que tal citar alguns? Semana de 22; Theatro Municipal, São Paulo adora artes e música; Catedral da Sé; Festividades do Quarto Centenário; Parque do Ibirapuera; Museu de Arte de São Paulo; Bienal das Artes; Bienal do Livro; Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo; Memorial da América Latina; Museu do Ipiranga; Campus da Universidade de São Paulo; Hospital das Clínicas; Autódromo de Interlagos; Horto Florestal; Jardim Botânico; Parque da Aclimação; Vale do Anhangabaú; Museu de Arte Moderna; Museu de Arte Contemporânea; Zoológico; Parque do Guarapiranga; Museu da Imagem e do Som; Sambódromo; Memorial do Imigrante; Pinacoteca do Estado; Parque Vila Lobos; Museu do Relógio; teatros; bibliotecas; Museu de Arte Sacra; Parque Burle Max; Catedral da Sé. Ela agradece profundamente esses regalos e, como toda jovem recatada, diz a quem quiser ouvir: "Eu não mereço…"

São Paulo é, com sua idade, uma cidade jovem. É ainda uma adolescente frente às milenares, mas que já passou por fases tristes, superando-as galhardamente. Por isso, e por tudo mais, é que eu tenho o prazer de dizer que a amo muito e que nasci em seu seio. Agradeço a tudo que ela já me deu e fez por mim, ciente de que ela tudo faz por seus filhos, pedindo em troca apenas que se retribua com respeito por ela e por todos os seus demais filhos. Pena que os políticos, seus dirigentes, não tenham a mínima noção disso. Quando alguém diz que ele é uma cidade fria, desumana, esquece que quem lhe empresta essas possíveis características são seus próprios habitantes, que não a amam e que não a ajudam a andar por si mesma. Como em toda parte existem os bons e os maus cidadãos.

Escrever sobre algo imensamente grande e importante como nossa cidade é difícil, pois se fica restrito à nossa pequenez, pelo menos a minha, que bem conheço. É óbvio que não atingi o desejado, mas restou a boa vontade e o desejo de compartilhar com os amáveis leitores alguma coisa relacionada com a querida cidade que habitamos, seja os que aqui nasceram, seja os que foram recebidos de braços abertos e tanto contribuíram para sua grandeza.

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