Mandahay, Mandihy, Manaqui, finalmente Mandaqui, eis aqui algumas das definições traduzidas da língua tupi, com referência ao Rio dos Bagres ou dos Mandis no então existente ribeirão da antiga estrada do bispo, atual Rua Conselheiro Moreira de Barros.
Aqui vão algumas anotações, agora já pré-julgadas de uma respeitável distância no tempo, num resquício do período da história de nossa imensa cidade, deste fabuloso São Paulo. Foi por isso que chamei de pequena anotação esta breve descrição, procurando ser o mais objetivo possível, sobre os fatos vividos numa época de minha infância, neste autêntico bairro do Mandaqui.
Agora já passados 50 anos, lembro-me do tempo que eu ainda menino, punha-me sôfrego, caminhando pela trilha que margeava a ferrovia da Tramway Cantareira debaixo do frescor da sombra das gigantescas árvores, que debruçavam seus ramos pendentes sobre a margem do antigo caminho do trem.
Eu costumava andar pela lateral dos trilhos, nas curvas sinuosas nas reentrâncias do terreno, saltitando por pequenos córregos ao longo da linha, nos espaços vazios entre um dormente e outro no caminho da ferrovia.
Andava por ali curioso, olhando o alto da torre do campanário da igreja de Santa Teresinha, onde já se avistava os primeiros raios luminosos do sol.
Havia, por lá também, no céu, uma nesga luz clara, filtrada sobre uma franja branca nos quintais das casas entre roupas estendidas, dependuradas, desfraldadas nos arames dos bambus ao sabor do vento brando.
Hoje, já despido da distante meninice, eis aqui novamente, no mesmo caminho que tantas vezes percorri na minha infância, com minha mãe e minha tia a cinquenta anos atrás. Após um longo espaço no tempo, resolvi voltar e visitar o velho e querido sítio do Mandaqui.
Agora aqui estou novamente, numa bifurcação da Avenida Marechal Hermes da Fonseca com a Rua Conselheiro Moreira de Barros, num largo amplo, arejado, demarcado pelo corte íngreme e reto do morro de Santa Teresinha de onde avisto os telhados velhos, enegrecidos pelo tempo, dos sobrados e casarões de antigas construções, que lá ainda existem e resistem após todos esses longos anos. Parece que tudo isso foi ontem.
E, para reavivar a memória, lembrei-me daquele pequeno espaço de rua, onde havia um pequeno trecho da extinta estação do trem da Tramway Cantareira. Para ser exato, era ali, naquele mesmo lugar, a continuação da linha férrea que vinha de Santana e demandava ao bairro do Mandaqui.
Na época, este percurso era inevitavelmente percorrido pelo trenzinho da Cantareira. Hoje, no seu lugar resta apenas uma rua asfaltada, com boas casas, bem construídas, substituindo as antigas moradias ao longo do traçado do velho caminho da ferrovia.
Apesar da longevidade do tempo e da modernidade atual, posso ainda ver, em algumas casas, as hortas todas pintadas com as cores do verde nos prosaicos canteiros no fundo dos quintais. Hoje conservo intacto na memória, coisas do imaginário, quando ainda se é criança.
Que prazer poder rever as antigas referências do local e de um tempo já tão distante! Desfrutar dos momentos felizes que se foram tão depressa já na longínqua meninice. E é aqui, neste recôndito escondido, próximo ao serrado deslumbrante da Cantareira, que me trouxe novamente à memória, os lugares por mim percorridos.
Neste lugar, hoje ainda existe uma rua de especial recordação para mim. Ela é a Rua Helena do Sacramento. Na época, ela era apenas um arremedo de rua, uma pequena trilha tortuosa, escorregadia, de barro vermelho que começava no Mandaqui e terminava mais à frente, num amplo e arejado largo no bairro de Lausane Paulista.
Foi nessa mesma rua, quando nas manhãs tépidas e rosadas, eu costumava caminhar com meus primos e amigos, por aquele lugar aonde os meus olhos iam seguindo o traçado curvo de um ribeiro. Era ali, nas proximidades daquela rua, que ficava outrora o ribeirão dos bagres e dos mandis.
A rua era silenciosa, toda ladeada por um extenso barranco de onde filtrava por, entre a copa das árvores, uma nesga lamina de sol que cortava uma fatia do bolo de pequenas casas, limpíssimas, paralelas, uma próxima das outras, todas elas dispostas nas reentrâncias do terreno.
Havia ali, também, muitas árvores seculares. No entanto, uma só, sobressaia das demais. Era uma enorme árvore centenária, uma Liana enraizada no solo, crescida verticalmente em direção da luz do sol, entrelaçada de cipós de ramos longos circulares e espessos. Em volta dela, estendia-se o dossel das herbáceas que circundavam seu tronco escuro.
Havia também ali, de tronco amarronzado e de casca rugosa, inúmeros jequitibás seculares enfileirados ao longo do barranco; e as figueiras brancas de raízes chatas, protraídas, estendiam para longe do tronco os galhos lenhosos como grandes membros de sua folhagem viva e luxuriante.
Logo abaixo do barranco, a meia encosta, estendia-se um capinzal exuberante, deixando no seu rastro o amarelo escuro das reboleiras de sapé; no prumado horizontal da rua, o mato virgem crescido confundia-se em mil cores diferentes, como se fosse um tapete de rica e exuberante plumagem. E, acima de tudo isso, o azul diáfano do céu recurva-se em uma pequena fresta de luz branca cintilante.
E eu e a molecada, todos em volta do tronco gigante da velha Liana, disputávamos freneticamente a preferência para se dependurar no seu bojo de cipó e voar sem direção, rumo ao vácuo do pequeno abismo, com os joelhos dobrados encolhidos até a altura do peito, num vai e vem na haste do cipó sobre um aglomerado de trepadeiras e arbustos dispersos abaixo do barranco.
Naquela infantil aventura residia efetivamente a felicidade naqueles tempos de criança. Que alegria possuímos, depois de passados tantos anos, sentir novamente no recôndito fulgurante daquele maravilhoso lugar, o saudoso e prazeroso sabor da infância já agora adormecida naquele cenário deslumbrante no bairro do Mandaqui.
Olho agora novamente para o alto da rua, e vejo ainda, numa reentrância do terreno, o barranco e a velha árvore centenária, a Liana. Ela continua lá, da mesma forma que a deixei no tempo de minha infância. Está ali, com seus extensos ramos pendentes de cipós esparramados, e seu copado farfalhante flutuando suas generosas hastes pelo espaço azul do céu.
Olhando-a novamente, parece-me como uma velha e fiel companheira, que me saudava na minha chegada e me esperava sempre imóvel no mesmo lugar, pelo meu breve regresso. E neste cenário nostálgico, hoje um pouco modificado, o Mandaqui ainda traz, na luminosidade do dia, aquela frescura serrana, no ar grande, ar aberto e alto.
Agora desço a rua espremida entre o recorte alto do barranco e o apinhado baixo de casinhas da rua. O ar é toda uma transpiração fria de água e folhas. Respiro forte. Provo desse ar, como quem prova uma saudade de um tempo distante da minha infância e da velha Liana no meu querido Mandaquí.
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