Cada um dos nossos filhos tem uma árvore plantada em sua homenagem na nossa casa.
A árvore da nossa filha Sandra é um imenso Plátano, árvore símbolo do Canadá, que segundo os especialistas vive de 1200 a 1300 anos. Todo ano no inverno ela perde todas suas folhas, espalhando-as pelo gramado, restando apenas o tronco e alguns ramos. Eu brinco reclamando o tanto de trabalho que me espera daqui para frente se levar em conta todos os anos na imortalidade em que pretendo viver.
Sempre que olho para esta imensa árvore, ou varro suas folhas do gramado eu me lembro da minha filha e de um casal de tios queridos.
O nome dele era Miguel, o dela Santa. Nomes tão singelos, mas que eram inteiramente apropriados ao caráter e procedimentos dos dois.
Moravam em São João Clímaco, quase na divisa com São Caetano.
Para chegar lá, pegava-se o ônibus no Parque D. Pedro, atravessava-se o Ipiranga, virava-se à esquerda na Via Anchieta em frente ao Regina Mundi, daí até a Estrada de São João Clímaco e um bom pedaço a pé até chegar à casa deles. Alternativamente pegava-se o ônibus que ia pela Estrada das Lagrimas ou pela Rua Alencar Araripe e ai descíamos mais perto.
Eu passei algumas férias e muitos fins de semana na casa deles.
A casa era simples. Tinha entrada por duas ruas. Na rua de cima a casa propriamente dita, na rua de baixo, a carvoaria, que era o ganha pão da família.
Volta e meia ele fazia uma reforma, derrubava uma parede, construía outra, fazia um outro quarto até que no final ficaram duas casas e ele passou a viver de seu emprego e do aluguel de uma delas.
Na carvoaria eu e meus dois primos fazíamos entrega de sacos de carvão na vizinhança. E juntávamos o trabalho com a molecagem. Na ida, um dos três levava a carriola com o saco de carvão. Na volta vinham dois no carrinho e um empurrando. Às vezes, por excesso de velocidade ou falta de habilidade, uma pedra não vista ou um buraco inesperado, trazia um verdadeiro breque de mão e nós três, inapelavelmente, íamos ao chão. O grande medo era ter acontecido alguma coisa no carrinho, pelo medo de vermos o tio Miguel furioso. Mas ele nunca ficava nervoso. A tia Santa sim, dava sua costumeira e amorosa bronca e mandava irmos nos limpar da mistura de carvão, terra e sangue que aflorava nos joelhos e cotovelos. E como ardia a água e sabão nos machucados. Depois ela vinha, fazia os costumeiros curativos e lá íamos nós no dia seguinte fazer novas entregas de carvão. Isso durou até que os Cosmopolitas ou Semmer da vida fizessem com que seu comércio caísse e ele tivesse que fechar as portas. Não lembro nunca da tia Santa reclamar de lavar as roupas encardidas que diariamente lhe deixávamos.
Aos domingos tudo era mais interessante.
Ao longo de onde hoje se situa a Comunidade do Heliópolis, tínhamos dezenas de campos de futebol. O campo do Floresta, do Flor do Pinhal, do Florzinha, do Alencar Araripe, da Portuguezinha e tantos outros. E aos domingos, geralmente no campeonato da região, todos os campos tinham jogos que se sucediam, os segundos quadros e os primeiros quadros. E os clássicos Flor x Floresta e Flor do Pinhal x Flor agitavam a redondeza com discussões acaloradas e jogos eletrizantes. O tio Miguel era diretor do Flor do Pinhal.
Ficávamos alvoroçados quando víamos os jogadores do segundo quadro saindo já uniformizados da sede, batendo bola e ouvíamos as travas da chuteira com o barulho característico – clap, clap, – nas poucas ruas com asfalto, e os acompanhávamos na esperança de que um deles nos passasse a bola e pudéssemos fazer nossas embaixadas e mostrarmos que éramos craques também, não obstante nossos 10 ou 11 anos de idade.
Terminada a preliminar com os segundos quadros, vinha o jogo principal, sempre com o uniforme impecável. Por volta do meio dia ou uma hora da tarde, voltávamos para a casa para saborear a macarronada sagrada de cada domingo.
Mais tarde, depois de ajudar a enxugar a louça corríamos para assistir à matinê no Cine Seclker e ao final do dia, extenuados, esperarmos o dia seguinte para as costumeiras entregas de carvão.
Na segunda feira, retomávamos o dia a dia e contemplávamos admirados as camisas dos times expostas no varal de alguma vizinha, que mediante alguns trocados cuidava, lavando e passando, para que no domingo seguinte o Flor do Pinhal pudesse brilhar outra vez.
Foram poucos meses, mas com tanta intensidade que pareceu que um Portal se abriu e que aquele pouco tempo bem vivido representou vidas inteiras vividas num plano incrível e imortal.
E nessa imortalidade toda, volto ao Plátano e suas folhas cor de cobre no inverno.
Lembro da filhota tão longe e que, por coincidência ou não (e eu sei que é muito menos pela coincidência e muito mais pelo não), tinha como padrinhos dois tios muito queridos, que espalham agora suas bênçãos no Plano Superior.
Ela fazendo seus bordados e bolos deliciosos, ele comentando e fazendo brincadeiras para tudo que lhe aparecesse.
Ela, de nome Santa, e ele, simplesmente, Miguel.
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