Zatopek pisou nelas…

Com a expansão da linha do metrô nos anos 80, a Praça Marechal Deodoro passou por grandes reformas, não só para receber os novos trilhos como também sediar a grande estação e as obras das galerias de água, esgoto e circulação de ar. Tais obras não se restringiram apenas á praça, mas, avançaram pelas adjacências, principalmente na Rua Rosa e Silva, onde existe uma bacia natural que poderia provocar enchentes na rede metroviária caso não se promovesse o rebaixamento da galeria de esgotos e a ampliação das galerias de águas pluviais.

Morava eu em uma aprazível vila, que ainda hoje existe na metade do único quarteirão daquela rua, e, na execução da obra foi aberta uma gigantesca vala que tinha seu início na esquina da Avenida General Olímpio da Silveira, seguindo pela Rosa e Silva, que foi interditada, adentrando a vila e terminando na porta de minha casa, fazendo conexão com outra galeria que evacuava as águas da Rua Gabriel dos Santos.

O canteiro central que existia na vila, com várias espécies de flores, arbustos, duas árvores e um banco para descanso foi destruído, dando lugar à cratera.

Ao mesmo tempo em que a vila, inaugurada em 1935, perdia sua característica original, o leito da Praça Marechal Deodoro, na altura da Rua Lopes de Oliveira foi escavado, e, abaixo da camada asfáltica surgiram os paralelepípedos que foi a cobertura original daquele logradouro, exibindo ainda os dormentes e trilhos dos bondes que serviam os bairros de Barra Funda, Perdizes e Lapa.

Ao ver aqueles paralelepípedos, muitos deles ainda alinhados junto as bordas das escavações e outros milhares empilhados no canteiro de obras, ocorreu-me uma ideia, ou seja, utilizar aquelas pedras para o calçamento da vila, que perdera o seu canteiro central.

Falei com o responsável pelas obras que gentilmente mandou um funcionário calcular o número de pedras que seriam utilizadas e as removeu para a vila. Depois de finalizada as obras das galerias, foram assentadas em toda a área, e, lá se encontram até nossos dias.

Estas providências foram discutidas com os demais moradores da vila, mesmo porque houve despesas com o assentamento dos paralelepípedos visto que o poder público se omitiu e apenas iria concretar o espaço do canteiro destruído. Todavia, o meu objetivo principal em utilizar aquelas pedras era outro, e, não o revelei de imediato aos meus vizinhos…

Quando observei na praça, a camada asfáltica cobrindo os paralelepípedos, recordei-me dos anos 50, 60 quando por diversas vezes eu e meus amigos de juventude assistimos, na noite de 31 de dezembro, a passagem dos atletas da tradicional corrida de "São Silvestre", àquela época, com o trajeto original que saía e terminava na Avenida Casper Líbero, defronte a sede de "A Gazeta".

A Praça Marechal Deodoro era um local onde grande multidão postava-se para ver de perto os astros do pedestrianismo mundial, tais como o português Manoel Faria, o argentino Oswaldo Suarez, o belga Gaston Roelants, e o mais brilhante de todos, o eslovaco Emil Zatopek, ou a "Locomotiva Humana", como foi denominado, tal o vigor e a agilidade de suas passadas.

Eu vi os pés de Emil Zatopek tocarem aquelas pedras no exato local onde se abria a cratera. Estas pedras estão hoje assentadas na vila, defronte as casas, minha e de minha filha Gina, e, todos os dias tenho a honra de pisá-las e até mesmo deitar sobre elas, quando me disponho a brincar com meus netinhos, Samuel e Liz.

Em breve, quando eles tiverem idade para entender, eu vou lhes contar a história da "São Silvestre", do incrível Emil Zatopek e das pedras sobre as quais eles brincam inocentemente.

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