Viram as estrelas do Ipiranga?

Estive lá, quase não acredito. Acho que foi no ano de 1964, 1965. Não sei. Sentíamos uma nova e estranha onda, as mensagens nos chegavam em garrafas, despertavam uma euforia inexplicável. Admirável mundo novo aquele que se anunciava.
Lembro-me das descidas ao pátio no intervalo das aulas, pela manhã, onde convivíamos com os alunos do externato – uma zuada de crianças correndo e comendo. Uma convivência, digamos, desejável. Eles nos traziam notícias do front – uma revista com a foto do John Lennon, ou de um brucutu, uma de uma calça saint-tropez… Que era aquilo, meu Deus, que era aquilo que anunciava um novo tempo? Eu me aboletava nos cubos de ferro e desejava os acepipes dessa legião quase-estrangeira. Como o mundo era estranho lá fora… Mas como eu o desejava! Ele nos vinha como soluços intermitentes.
Numa daquelas tardes eternas – essa luz dourada ainda tarda na memória – lembro-me de que os alunos atearam fogo… E todos nos púnhamos a rir deliciosa e despreocupadamente. Éramos livres… Isto é, mais ou menos, sempre nos rondava a ameaça da visita compulsória ao grande-dormitório-grande onde nos esperava, depois das orações de praxe, o velho Molhão.
Não é incrível que só agora, muito recentemente, vim a descobrir que o santo nome do Molhão era León? Irmão Leão: Mo Leão: Molhão. O velho leão rugia e se assentava ao trono de vime solenemente, com pompa e circunstância, a batina desbotada, mas digna, o discreto sinal clerical no pescoço, repartindo a justiça e distribuindo as bênçãos de um domingo eterno que ainda embala a molecada ruidosa e travessa que habita minha memória.
Aquele pó de estrelas douradas, vermelhas, amarelas, ocres, polvilhadas pelo chão de ladrilhos corais, de onde vinha? A serragem úmida penetrava nas narinas tenras do menino e encardia a alma com uma fragrância indelével. Quantas vezes não empunhei heroicamente uma vassoura levando adiante aquele pó de estrelas castanhas?
Por falar em estrelas, havia um telescópio. Eu não me lembro quem o trazia de alguma sala misteriosa, instalava o instrumento, ajustava, mirava, focava e nos oferecia o espetáculo do firmamento. Acho que era o Padre Pedro Zamberlan. Estranho objeto! A noite nos cobria com seu manto de mistérios. As estrelas, tão distantes, que segredos guardavam? Via à direita o cruzeiro iluminado por uma covarde luminescência. Quantas vezes não pedíamos para que o Padre Pedro desviasse o foco para lá, para redescobrir as formas conhecidas da torre, tornadas estrangeiras pela luz fugidia; à esquerda adivinhávamos o galpão e suas oficinas abrigados pelo manto da dama noturna. E fazíamos fila, os olhos arregalados, as pupilas dilatadas, nervosas como tímidas dançarinas.
Assim como as estrelas eram arrancadas de seu caldo escurecido, tragadas por aquele instrumento poderoso, assim éramos arremessados a um mar de aventuras arcaicas, embalados num carrossel de galáxias espiraladas e luzes fugidias.
Ah! Essas estrelas meus filhos ainda vêem em meus olhos!

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