Uma vida, um exemplo

Esse relato é de uma ocorrência real e fiel, conheci o personagem principal.

Generoso Gonçalves, 72 anos, cinco filhos, mora numa casa de dois cômodos, acorda às seis horas da manhã, com sabor amargo de recordações que teve no dia anterior, não permitiram um sono tranquilo. Por que a lembrança de sua sobrinha, Ema Batista dos Reis, o atormenta tanto, como se fora uma terrível obsessão? Recorda alguns fatos que podem ser a causa direta ou indireta dessa perturbação e que tudo faz pra esquecer.

Sentindo o abandono de seus familiares, sozinho em seu quarto, percebe logo que o isolamento que se avizinha provoca revolta contra todos, e a lembrança de sua sobrinha traz momentos amargos de sua conduta, há quase trinta anos.

Com quarenta e poucos anos mora com sua mãe, idosa, esposa, dois filhos e uma crise financeira das piores. Bola um plano de eliminação de um incômodo que lhe pesa no orçamento doméstico, sua mãe. Não no sentido mórbido, é claro, apenas de forma suave, sem dar muito o que falar.

Sabe do desejo ardente de sua sobrinha Ema de vir pra São Paulo, morar e trabalhar aqui. Convida-a pra morar com ele na favela São Remo, nas imediações da USP, promete moradia, alimentação e, quem sabe, um bom emprego, desde que ela se comprometa de cuidar de sua mãe, dona Benta, avó de Ema. Ema aceita o convite, acredita nas promessas do tio, deixa em Londrina, Paraná, mãe e mais três filhos, sem contar seu marido, ergofóbico contumaz.

Aqui, Ema se acomoda com sua vó, no barraco, sem queixa ou reclamação, parece que o desconforto do barraco é um estímulo a mais, deixa bem claro o espírito otimista de que é possuída, não tem medo de trabalho algum.

Com plano dando resultados parciais, Generoso parte pro plano "B". O passo seguinte é mudar de casa, com mulher e filhos. Queixa-se com Ema, argumenta que precisa de casa maior, mas não deixar de ampará-la até que ela comece a trabalhar.

Passam-se meses, Ema com a vó Benta, nunca mais ouviu falar de seu tio que mudou sem deixar endereço, abandona-a a sua própria sorte, com a responsabilidade, também, de mandar "alguns" pra sua mãe e seus filhos, em Londrina.

Não se entrega ao desespero, começa fazer salgadinhos em casa, sai pelas ruas, de porta em porta, vendendo e, sem perder tempo, com os contatos, arruma casas que precisam de limpezas, sem vínculo algum, defendendo sua economia doméstica, sem descuidar de um emprego fixo.

Com esforço e dedicação, consegue um emprego numa empresa limpadora que presta serviço a USP, que dá a Ema a oportunidade de trabalhar num local bem próximo da favela, facilitando outras atividades que tem até então, vendendo aos professores e funcionários da universidade seus salgadinhos e docinhos.

Na manhã de junho, muito fria, cinco e meia, vem pelas alamedas da USP, em direção ao edifício que presta serviço, quando percebe que alguém vem pelo mesmo caminho, a passos largos, com a intenção de alcançá-la. Ema, assustada, com trinta e um anos, aspecto jovial, sabe que é atraente, na penumbra matinal, imagina as intenções de seu seguidor. Consegue alcançá-la, põe a mão em seu ombro e diz: "Oi, querida, como você se atrasou, não sabia que você passaria nesta alameda e…". De repente, o homem descobre que não se trata de alguém que permita o cumprimento matinal tão íntimo. Derrete-se em desculpas, se apresenta como sr. Martins.

Ema aceita as desculpas, sente a sinceridade do sr. Martins. Como seguem o mesmo caminho, sr. Martins quer saber onde ela trabalha e em que setor está indo. Ema dá as coordenadas e o sr. Martins pergunta se ela conhece outra mulher de limpeza, pra trabalhar em outro setor da USP. Ema não espera ele completar a frase e de pronto se oferece a preencher a vaga.

Com esforço, dedicação, muito trabalho, honestidade e simpatia, Ema ganha, de todos os funcionários, professores e alunos, um respeito digno de uma pessoa decente.

Após o ano, efetivada como funcionária pública, continua sua vida, compra casa em Cotia, manda vir sua mãe, seus três filhos e mais dois de criação, órfãos de seu primo, assassinado no trabalho de segurança de uma empresa, no Paraná.

A grandeza do caráter de Ema sobrepuja todas as vicissitudes e contrariedades que norteiam sua existência, nestes vinte e oito anos, sem guardar rancor, ódio e comiseração, perdoando Generoso pelo ocorrido.

Com estas recordações, Generoso, que soube da luta de Ema por um antigo vizinho, corroído pelo remorso, acha que o abandono e descaso de seus cinco filhos são premissas de um envelhecimento doloroso que se aproxima, deixando suas reações limitadíssimas e por demais cruéis diante de total desolação.

Conheci Ema no curso de jornalismo da terceira idade, na USP, apresentada pela emérita professora Cremilda Medina.

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