Primavera, setembro de 1960. Ele olhou para o oeste, no alto da torre, para o relógio da Estação da Luz. 8h da manhã de um domingo comum. Acabou de comprar o ticket da passagem do trem de carreira que deve sair pontualmente às 8h25 da plataforma, ao lado da Rua Mauá. Não levava nenhuma bagagem, apenas a roupa do corpo. Ele já tinha tudo planejado, iria de encontro a felicidade. Durante a dureza da semana, tinha se esforçado no trabalho, deixou tudo arrumado no escritório e partiu com a consciência tranquila, para o embarque na Estação da Luz. Tirou de dentro do bolso da calça o pedaço de papel amassado, que tinha anotado o endereço da pensão: Rua Cyra, 144 – José Menino – Santos.
O domingo era de primavera e já reinava no ar, em pleno vigor, as inumeráveis folhas novas na copa das árvores, no entorno do Jardim da Luz, reverenciando as primeiras florzinhas da nova estação. A cada hora, surpreendia em torno às transformações como se as árvores, os pedregulhos dos dormentes dos trilhos se preparassem para receber a nova estação.
Quando ele tomara o subúrbio na Lapa, ao passar pela estação da Barra Funda, depois do pontilhão da Avenida Rio Branco, o trem seguiu rente ao paredão do moinho Matarazzo e ele avistou os sacos de farinha de trigo empilhadas no pátio de manobras a espera de serem embarcados no trem de carga. Observou da janela do trem, ao redor, que a terra parecia esmagada pelos pés de quantos homens ali haviam passado, carregando repletos sacos de farinha; na parede suja da torre do moinho, via-se em letras embaçadas a sigla das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo, “Fides, Onor Labor”. Aquilo foi apenas alguns segundos e o trem subúrbio passou rente do paredão e sumiu ao longo do caminho rumo à Estação da Luz.
Ele deu uma volta dentro da estação e passou sobre a ponte de ferro marrom, que ligava a Rua Mauá e o Jardim da Luz. Parou na confeitaria “Espadone”. Diante do balcão, pediu uma média com pão e manteiga. Comeu e bebeu com sofreguidão. Ainda tinha no bolso da calça de brim duzentos cruzeiros. E como era a sua única fortuna, meteu a mão no bolso, segurou as duas notas de cem cruzeiros e ficou com a mão fechada, segurando as cédulas, como se fosse um tesouro recém-descoberto.
“Duzentão”, quer dizer, uma estada de quatro dias no litoral, pagando todas as despesas como a cerveja, os pastéis que compraria na praia, os destilados, os mariscos que, com certeza, iria se comprouver em comer a beira-mar.
Depois, desceu as escadas de madeira, apresentou o ticket da passagem para que o funcionário picotasse e desceu para a plataforma de embarque. A composição já estava estacionada. Ao todo, oito vagões, quatro de primeira classe e quatro de segunda classe. O seu ticket era para os carros de primeira classe. Entrou no quarto vagão e se aboletou confortavelmente no assento de palhinha, coberto por uma alva forração branca. Da janelinha avistou, no lado esquerdo, o cume da torre da igreja de São Cristóvão na Avenida Tiradentes.
O trem partiu. Era uma locomotiva “maria-fumaça” que jogava fagulhas de cinzas do carvão queimado no ar rarefeito. O cheiro do ozônio e enxofre era familiar. O comboio passou debaixo do pontilhão de ferro marrom da Avenida Tiradentes. Havia no ar uma treva amarelada, com um cheiro forte do carvão de pedra queimado, e debaixo da ponte, toda cortada de apitos e manobras, a fumaça subiu da locomotiva em espiral, escapou nos dois lados da ponte, se anuviou em uma nuvem escura, sufocando os bondes, os ônibus e os automóveis que estavam em cima, circulando na rua.
Um apito fino avisou da proximidade das porteiras do Brás. Ali era uma parada obrigatória, para receber o restante dos passageiros. Depois não pararia mais em nenhuma estação, apenas em Paranapiacaba. A estaçãozinha no alto da serra assemelhava-se a da Estação da Luz, só que em tamanho reduzido; as paredes eram vermelhas, de tijolos aparentes vindos da Inglaterra e grades de ferro negras. Não é de estranhar que, quase sempre, durante o ano todo, a vila passa sem a presença do sol. Naquele dia, porém, o céu estava azul, límpido, sem a costumeira densidade do costumeiro nevoeiro. O enorme relógio de quatro faces que domina a Vila estava marcando 10h25. Na descida da serra, ele avistou as casas de madeira ao longo dos trilhos.
Antes, porém, ele tinha descido do vagão, foi direto na torneira da estação, para beber a água pura que vinha diretamente do alto da montanha e era canalizada nos bebedouros. A manhã era tépida, sem nenhuma neblina, coisa rara, naquele ponto no alto da Serra do Mar. Ouviu o chiado da máquina cremalheira sendo engatada nos primeiros vagões para a descida dos patamares nos planos inclinados da vertente sul, sobre imensos abismos, cobertos pela folhagem das árvores que se alinhavam no precipício do barranco.
No vagão de primeira classe, durante a descida da Serra, os passageiros tinham se debruçado nas janelas do lado direito do vagão e punham-se avistar as nuances da paisagem; do lado esquerdo, havia apenas o paredão formado pelo corte dos morros. Uma inefável onda de alegria surgiu ao ver o sol esplendoroso transpor os píncaros das montanhas e viu que as gralhas, com ásperos grasnidos, abandonavam os ninhos em debandada.
O trem vai vencendo a serra em quatro etapas, separadas pelos patamares, com as máquinas fixas no subsolo movimentando as enormes engrenagens de tração que se parecem roscas sem fim.
Nas vertentes das montanhas a água deslizava por elas com leve rumor, dando-lhe um brilho móvel que parecia abreviar as horas. Uma exalação capitosa subia da terra, casava-se estranhamente à essência sutil que se desprendia das raízes de seiva, que relaxava os nervos e adormecia o cérebro. A flora tropical descortinava-se através da janela aberta do vagão e podia ver os gomos dos brotos rebentar no pujante verde claro deslavado lustroso. A natureza mudara o toalete e estava entrando no período dos amores com a chegada da primavera. Na mata, toda árvore, todo arbusto, toda planta tomavam-se de estranha energia. As flores, em uma abundância impossível, comprimiam-se nos galhos, empurravam-se, deformavam-se. À lascívia da flora se vinha juntar o furor erótico da fauna. Por toda a parte ouviam-se gorjeios e assobios, uivos e bramidos de amor. Era o trilar do inambu, o piar do macuco, o berrar do tucano, o grasnar gargalhado do jacu, o retinir da araponga, o chiar do serelepe, o rebramar do veado, o miar plangente do gato selvagem.
Da janela do vagão, ele podia observar o ar como que era cortado de relâmpagos sensuais, sentiam-se passar lufadas de tépida volúpia. Sobressaía a todos os perfumes, dominava forte um cheiro acre de semente, um odor excitante, provocador, preguiçoso, que penetrava pela janela do vagão. Parecia que ele havia se internado no meio da mata e, quando achava uma barroca seca, uma sombra bem escura, reclinava-se aconchegando o corpo na palhinha do assento do vagão e ficava observando da janela aberta na alfombra espessa de folhas mortas espalhadas pelo barranco. Finalmente o trem chegou à raiz da serra, em Piaçaguera.
Ficou estacionado, esperando pelos demais vagões que vinham descendo a Serra do Mar. Agora foi engatado na U-2002 a óleo diesel. Ele avistou adiante, já no caminho de Santos, as bananeiras de Cubatão que descortinavam em série entre os aluviões dos mangues espelhados na horizontal do morro, flutuavam os cachos dourados banhadas na luz do sol, das bananas dependuradas, para serem colhidas e transportadas nos trilhos do trenzinho que corria entre o bananal.
Tudo isso chega a ser irrelevante porque uma campainha toca e a locomotiva U-2002 apita, movimentando lentamente o trem, que vai ganhando velocidade à medida que avança pelo pátio ferroviário de Piaçaguera. À medida que avança rumo a Santos, antes passando pelo pontilhão de ferro sobre o Rio Casqueiro, que só termina quando o trem passa ao largo de um aglomerado de casas de palafitas ou na Vila dos Pescadores, sobre um terreno alagadiço de mangue, e passa pelo Largo das Saudades, quase chegando ao terminal na Estação do Valongo. Esta é uma história sentimental de meus tempos de menino, quando eu viajava em companhia de meu saudoso pai, um dos muitos ferroviários da antiga São Paulo Railway Company (SPR) para o litoral de São Paulo, durante as suas merecidas férias de fim de ano.