Um ser humano diferenciado

Moro no número 278, da Rua do Gasômetro, terceiro andar de um prédio de sete andares, sem garagem. Não importa, ainda, não tenho carro.
Cada andar é composto por quatro apartamentos. E assim distribuídos: num corredor retangular, com pouco mais de um metro e meio de largura e 10 metros de comprimento. Para me fazer entender o que vou contar, preciso levar a você uma ideia de como estão localizados os quatro apartamentos nesse corredor.

Se você sai do elevador, ou das escadas, na parte mais larga do corredor, a sua esquerda estão dois apartamentos e a sua direita, outros dois. Dois, localizados nos extremos, ficam um defronte ao outro (na distância dos 10 metros), e os outros dois, ficam defronte as paredes, formando um "L" com seu vizinho. Vou numerá-los, assim não vai ficar dúvida: os dos traços verticais, são os de número 2 e 4; os dos traços horizontais, 1 e 3. Deu pra entender? Qualquer dúvida, o prédio ainda existe…

O meu apto. é um dos que ficam a direita do desenho acima, 4, aquele que fica bem em frente ao vizinho do fundo, 2. Portanto, pelo "olho-mágico" vejo a sua porta e ele, a mesma coisa, só vê o meu. Os outros dois, 1 e 3, ficam em frente a parede, tem visão parcial, enquanto que o 2 e o 4, tem visão total do corredor. O meu apto. dá pra Rua do Gasômetro e o outro, em frente, dá para os fundos do prédio. Isto posto, vamos ao que interessa.

Como se trata de um prédio de pequeno porte tem um só elevador e qualquer pessoa que chega ou que está indo embora, se ouve bem, a porta do elevador, os passos, se é adulto, criança, mulher ou homem, acústica formidável. Dá muitas dores de cabeça por causa das crianças, brincando nos corredores. A única área de recreação é na calçada (Gasômetro, já viu, né?) ou no p.D. Pedro II. Porém, nem por isso há animosidade com os vizinhos.

O vizinho do apto. 2 estava de mudança. Em seu lugar veio um casal simpático, André e Alice (nomes fictícios), ela senhora morena, obesa, muito educada e solícita, e bastante comunicativa, com um sorriso cativante. Ele, um pouco mais alto que ela, magro, arredio, parecendo querer agradar a todos sem saber como, profundamente tímido.

Passam os meses, ficamos sabendo que ela é funcionária do Parque Infantil D. Pedro II, local bastante comentado pelo nosso colega Rubens Romão, o Trierre, servente ou qualquer coisa parecida e ele, aposentado por deficiência física. Nesse meio tempo a Myrtes, minha esposa, já começa a se preocupar com esse casal. Sexto sentido funcionando.

– Modé, esse cara, o Sr. André me preocupa muito. Olha pra gente de uma forma estranha, às vezes cumprimenta alguma coisa, outras vezes mostra uma carranca, de repente, todo sorridente… Deve ter algum problema de relacionamento, sei lá… Não sei o que é, mas que tem, tem…
– Não se preocupe Mimi, a esposa falou que ele é aposentado por doença, por isso, às vezes fica meio acabrunhado, aborrecido, não liga pra isso…
– Não liga…? Não é você que fica o dia todo com as crianças, querendo sair pro corredor pra brincar e eu com medo danado desse cara…
– Agora você vai fazer um drama com o pobre do homem, o que ele pode fazer pras crianças e você…?

– Não sei… Quando acontecem as coisas é sempre tarde pra remediar. Ainda outro dia, estava esperando o elevador, com as crianças e ele saiu do apto., solícito, sorriu, abriu a porta do elevador pra mim, cumprimentou e olhava pras crianças de um modo estranho… Meio alegre… Meio triste… Hoje, aconteceu à mesma coisa, só que saio do apto., apressado, de cara amarrada, sem cumprimentar, abriu a porta do elevador, entra e nem segura a porta pra mim e as crianças… Você não acha isso estranho, Sr. Modesto?

Chego ao escritório do Matarazzo, Praça do Patriarca, onde trabalho como vendedor de embalagens, 4 horas da tarde, terminando meu dia de visitas, quando a secretária me avisa que minha esposa ligou e que é para eu retorno o mais rápido possível. Ligo e a Myrtes, toda nervosa me pede: – Mô vem depressa pra casa, esse cara, o vizinho está com más intenções…
– Mas, o que aconteceu…?
– Olha, estamos perdendo tempo, (começa a chorar…), se você pode, venha agora.
– Ta bem, já estou indo.

Em casa, minha mulher começa a falar: – Estava sentada no sofá, logo depois do almoço, quando você saiu, (almoço em casa) vendo TV com as crianças. Caí num soninho e fui despertada com um ruído na porta, alguém tentava abrir, mexendo na maçaneta… Meio assustada, vou ver pelo "olho" quem estava na porta. Ninguém… Lá no fundo, nosso vizinho, o único com a possibilidade de ter mexido na nossa maçaneta… Mexendo na maçaneta do apto. 1, seu vizinho de porta.

Sem conseguir nada, volta-se para o seu, abre e entra. Agora, me diga, querido maridinho, meu medo é infundado…? O cara mexendo nas portas de todo mundo… Com que intenção…? Se você não for falar com eles, vou pra casa da minha mãe. Fui e contei pra Dna. Alice que ficou toda constrangida pediu mil desculpas, me dando garantias de que isso não aconteceria mais, ela justifica o ocorrido dizendo que ele toma remédios que o deixa meio baratinado, mas que ele não é agressivo e que apesar das perturbações mentais, é um homem com alma pura.

– E por que você não o interna, ela precisa de um tratamento adequado, existem medicamentos e tratamentos modernos hoje em dia e…
– Já tentei, me disseram que ele não oferece perigo nenhum e que o tratamento pode ser feito em casa.
-É, isso os médicos falam, mas vá convencer a Dna. Myrtes… Bem, vou tranqüilizá-la e a senhora faça alguma coisa.
– Já estou fazendo, levo-o para o parque, fico o dia todo com ele. Peço, mais uma vês, desculpe Sr. Modesto.

Fico condoído com a situação de dona Alice. Passa-se menos de um mês, minha mulher me azucrinando o ouvido, e com razão, e aí ocorre o inesperado. Estou na sala, sentado no sofá, com as crianças, aguardando a Myrtes chegar do empório, um sábado à tarde, quando ouço o ruído familiar da chegada do elevador. Fui ao "olho", na certeza de ser a minha esposa, pra ajudá-la com as compras, quando vejo algo que nunca mais vou esquecer…

Eu mesmo vi ninguém me contou… O Sr. André na frente da porta do elevador, olhando pra ele (o elevador), segurando e largando a porta; quando fecha as portas internas as do elevador começam a fechar, atendendo algum chamado, ele abre de novo, interrompendo o atendimento. Faz isso várias vezes, com um sorriso terrificante, parecendo gozar, de forma despreocupada.

Como a chamada de alguém esperando o elevador pode ser da Myrtes, me preparo pra interromper a "brincadeira" quando, inesperadamente, ele estanca, para, olha com raiva pra porta, mantém-se perfilado, rígido, como um soldado obedecendo a uma misteriosa ordem de sua cabeça, faz meia volta pra direita, fica de costas pra mim. Ai ele começa a andar… Pra traz, em minha direção. Penso, esse cara é doido, espero a Myrtes chegar a qualquer instante, fico observando.

Ele continua andando pra traz, empertigado, rígido, equilibrado como soldado russo em desfile, só que na "ré". Continuo em guarda no "olho", ele vem vindo sua nuca está a poucos centímetros da minha visão. Mantém-se firme, agora está de frente pra mim, parece que vê meus olhos pequenininhos, dá um sorriso gelado, como se estivesse a me gozar. Mas não está, começa a recuar, sempre de costas, segue até a porta do elevador, para, da meia volta, olha pra porta do elevador, como se estivesse cumprimentando, depois volta na posição, segue até sua porta, vira-se e entra.

A Myrtes chega, nada percebe, é claro, entra em casa e lhe conto tudo o que aconteceu:
– E agora, acredita em mim?
– Sempre acreditei só que…
– "Só que", uma pinóia que você acreditou, ta vendo com quem estamos lidando? Precisou ver com seus próprios olhos, pra acreditar, São Tomé do Brás.

Conversei mais uma vez com a Dna. Alice e sentir uma pena dela, mas não podia fazer nada. Ela consulta alguém do hospital, consegue uma internação, e ele fica confinado por um bom tempo, não lembro quantos dias. Quando Sr. André volta pra casa, não passa muito tempo, Dna. Alice cai doente, é hospitalizada e vem a falecer. Sofria do coração, das duas maneiras, uma física e outra sentimental, gostava muito do marido.

Este foi um momento triste, constrangedor e angustiante. Quando vieram do hospital, para buscá-lo, ele estava sozinho, chorava como uma criança, dizendo que ela o abandonara e desesperado pedia sua volta agarrado a uma inútil e malograda esperança de que, para nós, que a tudo assistíamos, a única certeza é que ele estaria com ela quando morresse.

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