Um degenerado

Em todos os bairros da cidade de São Paulo, dependendo dos anos de existência, abrigam-se fatos, ocorrências, acontecimentos e eventos tais que, com o passar dos anos, parecem ficção, invenção popular e, dependendo de sua importância ou clamor que possa ter provocado, são guardados, na memória de seus habitantes, pelo menos nos que possuem sensibilidade, mesmo que seja em grau não muito elevado.

Isso ocorre, também e principalmente, com pessoas, isto é, gente que se destaca por vários motivos ou razões, involuntárias personagens que a vida expõe, por destino ou o que quer que seja, dependendo da crença de quem os interpreta, uma Entidade Superior. É muito fácil ou mais cômodo se dizer que… “já estava escrito”… sobre uma ocorrência, triste ou alegre, mas os acontecimentos e o desenrolar de nossa existência dependem quase que exclusivamente de nosso empenho e nosso comportamento diante do porvir.

Sirvo-me deste preâmbulo, por mim feito e publicado, pra contar uma ocorrência que marcou minha vida pra sempre e titubeei em narrá-la, por receio de uma interpretação duvidosa ou maldosa. Recorri à mesma abertura que utilizei pra contar um fato mais alegre e pitoresco que foi a primeira pizza que saboreei.

Agora não, essa experiência foi, no mínimo, uma lição, um alerta na minha meninice que, graças a Deus, não teve maiores (e piores…) consequências por Divina Providência.

Por razões que não importam agora, comecei a ter contato com a realidade, muito cedo e cedo a essa inexperiência, os fatos, alguns alegres e outros, deprimentes, mas todos em boa hora pra solidificar uma estrutura de aprendizado que a vida me apresentou, na mocidade e maioridade.

Menor, com treze pra quatorze anos, trabalho na Fábrica de Calçados Navajas, na Rua do Gasômetro. Meu serviço é auxiliar as pespontadeiras, escarnindo, passando cola benzina (com o cheiro característico que nunca me viciou, nem a mim e nem às minhas irmãs), dobrar e refilar. Faço, também, serviços de "boy", na cidade, entregas de amostras, nas lojas, serviço de bancos etc.

Num dia desses, tenho que levar um par de sapatos pra uma loja na Rua Líbero Badaró, próxima da Avenida São João. Vou a pé, passo em frente às portas do magnífico prédio Martineli, quando um homem, bem vestido, não muito alto, bigodinho, se aproxima de mim e pergunta:

"Ôh garoto, onde é que você vai?"

Na minha ingenuidade, respondo:

"Entregar essa amostra numa loja, aí na Líbero… por quê?"

Ele continua:

"Você quer ganhar uma boa grana pra entregar um pacote pra mim?"

"Não posso, estou trabalhando, tenho que entregar isso…"

"Mas não é longe, na Praça do Patriarca, e você vai ganhar uma boa gorjeta."

Pensei, o mirrado salário, todo entregue em casa, família enorme, pra uns caraminguás a mais não custa fazer esse servicinho.

"Onde está o pacote, eu vou…"

"Muito bem, venha comigo, está em meu apartamento, aqui no Martineli, no 7º andar…”

Meio desconfiado, mas sempre de olho na propina, respondi:

"Não, não posso me demorar…”

"Ora, é rápido, o nome da loja está lá, é subir e descer…, preciso ficar no apartamento, espero um cliente, você pega o pacote e já leva a gorjeta… venha."

"Tá bem, vamos…”

Pelo elevador, chegamos ao 7º. Entramos no apartamento, pequeno, cama de solteiro, e imediatamente ele fecha a porta com a chave. Fico já apavorado, caí numa armadilha, penso.

"Pra que passar a chave se vou sair agora?"

"É que a gente precisa tomar muito cuidado… senta aí na cama, vou apanhar o pacote, está no guarda-roupa.”

Vira e se encaminha até outra sala e volta com as mãos abanando.

"Puxa, que azar, rapaz, meu amigo deve ter levado, mas não tem importância, vou te dar a gorjeta assim mesmo… mas, me diga seu nome, qual sua id…

Interrompo o papo, peço a chave pra abrir a porta, ele fala:

"Calma garoto, você é alto, deve ter um pinto respeitável… deixa eu ver, vá, dobro o que te prometi… "

De fato, com minha pouca idade, tenho a altura dele, que deve ter uns trinta anos, se tanto e franzino; me preparo pra me defender, alcanço a porta, ele se aproxima e tenta tocar no meu pinto (na época, pintinho, o medo fez ele desaparecer…), grito com toda força do pulmão:

"Seu filho da… se você não abrir essa porta te jogo pela janela, cachorro pestilento…"

"Fala baixo, menino…"

"Abra essa porta, senão…"

Ele abre a porta, saio, vou pro elevador, não está no andar, não perco tempo em chamar, tremendo de medo e agradecendo a Deus por me livrar da situação, desço os sete andares, estabeleço uma velocidade recorde, chego na São João feliz da vida por ter escapado e prometendo nunca mais me deixar levar pela ambição. Com a amostra debaixo do braço, faço a entrega e vou embora, feliz da vida.

Esta é a primeira vez que conto esse fato, nunca cheguei a falar sobre isso com ninguém, principalmente com meus familiares, tinha vergonha e… medo. Por falta de coragem, mantive este segredo que poderia ter me custado a vida, pois um ou dois anos depois, 1946 ou 47 (os da minha época devem se lembrar), um crime, até hoje insolúvel, o mistério de um rapaz, bem jovem, que foi jogado pelo poço do elevador do prédio Martineli, Davildson era seu nome, e seu matador nunca foi descoberto. Coincidência? Quem sabe…

Isso só vem corroborar a crença popular de que a vida é uma tragicomédia, eternamente interpretada por todos nós, entrando e saindo de cena, segundo a vontade do Grande Diretor.

E nessa comédia ou tragédia humana, quem se destaca no elenco universal? Os mais belos? Os mais inteligentes? Os mais espertos? Os mais valentes ou covardes? Não, nada disso, os que mais se destacam e permanecem na memória dos saudosistas são os “artistas”, que sabem improvisar, os que, sem conhecer nada do “texto”, tem um comportamento diferenciado, são os que levam suas existências de uma forma totalmente liberados de qualquer esquema ou direção, livres, enfim. E quem são eles ou elas?

São aqueles que se negam a desaparecer de nossa memória, os que marcaram sua presença com “interpretações” de tal forma diferenciadas que sempre, mesmo depois de desaparecerem, continuam vivos, com destaque em nossas lembranças, mais até que determinados parentes ou amigos que passaram por nossas vidas. Obrigado.

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