As lembranças vinham à tona. Recordava-se enquanto jazia em coma no hospital beneficente. Junto dos pedidos choros, dores, orações e mágoas, ele recordava o pretérito com saudade da infância, mesmo de passagens desagradáveis.
Na sua chegada da península Ibérica, a avidez do pai que tanto sonhara com aquele momento, ao passar noites de solidão, dias de inverno a mover a pesada carriola cheia de frutas e legumes para vender, resgatar a família e trazê-la ao Brasil.
O navio no porto de Santos, a alegria da concessão consular da viagem, e ele ainda menino, com a cabeça disposta ao centro da bóia salva-vidas, dándonos en el pañuelo, brincava o tio que o fizera conhecer o futebol.
Tornara-se corintiano rapidamente ao assistir o jogo em plena domingueira no Pacaembu, ele que o conhecera pelas tardes de domingo na TV Record. Perplexo ficara ao perceber os jogadores em campo, exclamou:
– Ellos son hombres de carne, ellos no son muñecos, ainda a utilizar os vocábulos hispânicos.
O tio responsabilizara-se por sua volta, diariamente, do parque infantil, deixando-o em casa são e salvo dos poucos perigos que havia. Um dia olvidou, e foi advertido pelos pais, o menino sem chorar amargara o frio do portão da escola até tarde da noite. Com a falha, aumentaram as obrigações, o tio teve que delatá-lo à mãe quando pretendeu, no caminho de volta, pular o muro da "casa assombrada" para furtar goiaba. A inocência, ante a advertência da mãe, foi fatal:
– Ah, eu sou ladrão, não roubei as ferramentas da loja?
Já falando português, levou a surra em espanhol:
– Baboso! Baboso! – gritava a mãe, a cada tapa dado. Estendeu a surra aos outros filhos, pois necessitava aproveitar o exaspero.
As lembranças fluíam com a espiral do tempo, levando-o ao passado distante. O medo veio à memória, no tempo escondido ficara a pedra arremessada na cabeça do primo amigo. Recordou-se como se fosse agora.
O garoto do outro lado da rua coberto por pilha de tijolos dissimulava. Colocava a cabeça à tona provocando que o acertasse. No arremesso do caco de telha abaixava rapidamente a cabeça e soltava sonoras gargalhadas, a desafiar o primo maior que, num gesto de lucidez, segurou dois fragmentos de telha e arremessou o primeiro. Na subida da cabeça o menino ibérico recebeu o segundo na testa, caiu estatelado sem tempo de zombar com o riso.
Pálido e inquieto, o primo mais velho disparou a correr, sem encontrar um lugar oculto lugar. O mecânico dono dos tijolos dispostos o induziu ao medo, exagerou o acidente:
– O teu primo esta caído, com a cabeça aberta, todo ensangüentado.
No regresso a sua casa, no final da noite, sem poder adiar o retorno, aguardou a surra com o terror retratado no rosto. Para sua surpresa, a mãe o mandou lavar-se para jantar. O mecânico mentira, os efeitos da pancada não foram tantos, e o primo amigo ocultara o segredo, planejando o revide.
Sofrera o revés da doença maligna e salvara-se como por um sopro divino, mas, agora, o retorno do sofrer pelos desencontros do amor, que antecederam essa dor. Utilizaria o salva-vidas da chegada para se preservar do dano?
Não deu, se rompera, partira junto com a consciência viva, junto dos seus, na certeza de ter passado pela existência amando-os e respeitando-os todos os dias da sua vida!
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