Bem, minhas primeiras historinhas saíram de quando eu ainda detinha a posse da Facit “manual” – como se, por comparação, as máquinas “elétricas” IBM ou Olivetti “manuais” também não fossem. Eu então datilografava os textos. “Minutas”, que um de meus dois filhos em seguida passava para a internet. Pelo menos, duas pessoas liam: eu e o co-piloto.
Primeiro conheci o site VIVASP, do Juliano Spyer, via Rádio Eldorado (belo nome, que mudou). Depois, descobri o Site SPMC. Ambos, louváveis. Ambos, guardiães da memória paulistana. Ambos, coração de São Paulo.
No inexorável transcorrer do tempo, as reminiscências eu continuei lembrando. E escrevendo – não mais dedilhando a Facit, tão companheira! Ingrato, dela me desfiz. Arrepender? Sim, mas… “Inês é morta”. Nunca mais máquina de escrever! Agora é tarde…
“Ah, não tenho mesmo mais o que escrever”, menti para comigo mesmo. “Ah, nem tenho a quem escrever”, tentei de novo me enganar. Bem, de fato o site VIVASP silenciou; afortunadamente, o site SPMC continua marchando. Hoje, quando calha a mim alguma tola recordação, a minuta agora é via caneta! Daí, o co-piloto bota “ela” no ar! No ar, como os DC-3 de minha infância…
Toda esta conversa mole para eu justificar que não simpatizo com teclados de micros. Não bastando, eu sequer enxergar os minusculíssimos caracteres de pontuação, não tolero as teclas molinhas, sensibilíssimas que, ao meu duro toque, o texto desliza, escorrega assim, ó: “llleeeemmbrrrrooo bbeeeemmm”…
Relou o dedo, “dispara” qual metralhadora (da Revolução de 32)! Volta pra mim, Facit!
Destreza e paciência: quem tem parabéns!
Facilitam-nos a vida, né? A primeira deve tê-la tido, provavelmente, o sujeito – quando “caiu” (pousou?), um domingo à tarde (crepúsculo?) quase no quintal de minha casa (na tangente geométrica).
Bom, se é que não tenha sido mesmo um acaso. Paciência, isso ele teve, muita! Por ter logrado livrar-se – praticamente sozinho – do emaranhado de cordinhas e galhos – santa paciência!
Eu tinha de nove para dez anos, era a São Paulo de 1957. “Destreza”, por certo, eu nem sabia o que vinha a ser. Já “paciência”, muitos adultos mostravam o que era… justamente não ter! Contigo terá ocorrido igual, contemporâneo(a)?
São Paulo, a de 1957… Nem de longe, hein! Nem de longe imaginar-se-ia que os então “nem tantos assim”, os prédios altos nos bairros, acabariam resultando na absurda concentração – na esmagadora maioria, feiosos e sem graça – que determinou o perfil de São Paulo.
Só que aquela São Paulo, que jornais elevavam à “metrópole” – A Gazeta, Correio Paulistano, Estadão, as Folhas, Diários (Associadas) . São Paulo era ainda bem fabril, de muitas chaminés e bairros operários, sabe-se, não?
Entre meus nove e dez anos, eis-nos – eu e meus pais – naquela casinha “de aluguel”, de quintalzão grande. Rua José Antônio Coelho, 736. Hoje (e já faz bom tempo), no lugar – sob outro número – um desses enormes prediões. Certamente junto dos alicerces, um ou outro tijolo da casinha de outrora – longínqua outrora…
Era uma Vila Mariana charmosa – ainda – a dos anos 50. Lá onde eu morava, moradores alguns (muitos?) “incorporavam” o trecho ao território do Paraíso. Talvez não só pela proximidade com o que, de fato, era “Paraíso”: a Brahma, o Colégio Ypiranga, a Santa Generosa, a Catedral Ortodoxa… Mas também por conta do ponto final do ônibus 48-Paraíso, Pelotas com Amâncio, bar do “seu” Pasqual. Certo, era quase Ibirapuera – Vila Mariana ainda, que teimosos garantiam: “Pa-ra-í-so!”.
E, muitos lembram, na São Paulo de 1957, comemoração (bela) do jubileu de prata da Revolução de 32, não? “Chuva de prata”, esplendor! – ainda me lembro. Em vários pontos da Cidade, de dia ou à noite (sob fachos de luz dos holofotes do Exército!).
“Chuva” de milhares e milhares de triangulinhos – “papel-alumínio”, teriam sido, eles? – lançados de igualmente prateados DC-3, portas abertas! Inesquecivelmente lindo, para meus olhos de moleque! Nos triangulinhos – iniciativa do industrial Pignatari, não? – o brasão de São Paulo.
Ah, lembro bem. Meu pai juntou um montão deles para mim. Dos quais nem guardei unzinho, ingratidão! A mesma, que repeti com a Facit. “Ingratidão”: trago isso no peito?
Nos nove para dez anos, certamente – já não lembro exato – eu era moleque de calça curta e suspensório. Acho também (lembro menos ainda) que de corte de cabelo, falavam “americano”…
Julho de 1957, um domingo já noitinha, o vespertino… Mulher elegante, fina e charmosa que era, recendendo a jasmim, nos quintais, Vila Mariana – nas noitinhas a dentro – ostentava como que um infinito colar de pérolas (madrepérolas, ao menos). De muitas “voltas” (digo, ruas), luzinhas brilhantes, as lâmpadas de filamento, nas ruas como o longo retão da José Antônio Coelho – que eu, moleque, comprazia de ver acenderem. As contas do brilhante colar… Vila Mariana: do ônibus 11, bonde 27. Cruzavam o Paraíso.
“Paraíso”, também, era-me o imenso quintalzão da pequena casinha. Terra, árvores, plantas e um gramadão! Gramado, para minha mãe, quaradouro das roupas lavadas no tanque; para a molecadinha do “entorno”, campinho! (entorno: corte na primeira sílaba, e ela dá duas com valor de uma – em torno).
Quintal que era adjacente a uma face de colossal chácara (na verdade várias, geminadas), um horizonte ilimitado que, na ausência de prédios altos no “entorno”, deixava vislumbrar Moema, Ibirapuera, Jardim Paulista, até quase Itaim-Bibi.
Naquele domingo à noitinha, eu e meus pais… Na certa, retorno de algum passeio, casa de parentes – alguma lonjura que a precariedade e morosidade da condução tornava ainda mais longe… Era coisa de bonde+ônibus+ônibus+bonde, a “cansar” de vista. E há, por certo, quem reclame do metrô!
Velhinho… Foi só passarmos pelo portão de madeira, da rua… Girar a tramela… Adentrar a escuridão – só iluminada pelo luar… “Que é isso, hein?” – pensamos nós três ao mesmo tempo. Pois lá no fundão dava para ver, por detrás da ameixeira, das bananeiras… Esquisito, sô! “Que é isso, hein?”.
Por cima de um dos pinheiros, iluminado pelo luar, à primeira visão, um enorme “lençol” branco – um monte de cordinhas enroscadas no pinheiro – e um camarada um tanto dependurado, um tanto já no chão.
Cheguei perto, ele inteirinho, mas “assustado”:
– Tem cachorro, aqui, moleque? Tem cachorro?
Tinha não. Sossegou. Sossegou, o… paraquedista!
Uma observação: cachorro tinha, o do Osvaldo, nosso vizinho, irmão do Dionísio (meu pai) – ambos, paulistanos do Glicério. Era um cachorro “lulu”, ranheta e bravinho (talvez porque vivia acorrentado, coitado). Quando eu menor ainda – ah!, infeliz ideia – “chegaram-me” perto dele, o “Gaúcho” (o cachorro). “Fiu, fiu, fiu!”, alguém acordou o bicho. Imediatamente, ele me tacou uma mordida no antebraço esquerdo. Tenho a cicatriz até hoje – faz mais de sessenta anos.
Se chorei? Não… mais que bastante! Confiro vez ou outra: a cicatriz ainda resta, à flor da pele. É o que me restou, fisicamente, da Vila Mariana de infância: retrato de uma mordida.
Voltando à vaca-fria. Moço, cachorro não tem. Mesmo porque – não contei ao paraquedista – aquele que me mordera nem tinha como chegar aos pinheiros. Nem latindo, estava. Mas para furar meu antebraço… Sujeitinho nervoso, o tal “Gaúcho”!
Lembro, sim. Que o pinheiro nem quebrou. Mas entortou, curvou – vi no dia seguinte. Paciência, o paraquedista teve. No escuro, hein!
Livrar-se das cordas, dos galhos… Só ele – “suzinho”, diziam alguns – até que chegaram dois ou três colegas do ar. Eu… “fui para dentro”, ordenou o general – digo, minha mãe. Não deu repercussão. Ninguém da rua entrou na chácara. Soube-se depois. Nem jornal, nem polícia. Só testemunhamos, eu, vagalumes (que brilhavam) e grilos (cri-cri-cri…). As flores da chácara, elas dormiam. Idem, borboletas.
Moleque de então, fiquei depois sabendo. Como parte da comemoração do Jubileu de 32, paraquedistas civis saltaram. Também de luzidios prateados DC-3 (da Cruzeiro do Sul, se não me engano) para lograr pousaram nas proximidades do Obelisco, não longe de onde eu morava. Na tardinha do domingo.
Capricho eólico, o vento deve ter desgarrado aquele. E, senão por acaso, com destreza – “manobrando” as cordas – ele deve ter desviado de fios e telhados para, com relativa segurança, pousar na chácara, que obviamente notara. Assim, a imensa chácara de “seu” Joaquim ganhou um pinheiro torto!
Ironia do destino. Aquele salto, homenagem aos paulistas das trincheiras, deixou o pinheiro curvado – como um soldado constitucionalista, o peso do fuzil e petrechos, às costas… O episódio foi irônico. Para o moleque, inusitadíssimo. Para o “Gaúcho”, uma chance (de morder outro) perdida.
Dias seguintes, um ou outro moleque me interroga, colhe algum depoimento de mim. O “italianinho” é um deles.
– Ô, “iscuita”, caiu “uma” “paraqueda” na tua casa?!
– Ô se caiu!!!
– Foi nas “telha” que caiu?
– Quase que foi!
– “Intão” foi nas “pranta”?
– No pinheiro. O “home” enroscou tudo!
– Quebrou as “perna”, veio ambulância?
– Quase morreu, mas “nóis” “tiremo” ele.
– Puxa vida, hein!
– Eu nem deixei o cachorro morder ele! (não o Gaúcho, mas o outro, que nem “tinha”).
Fim. Ufa!