Tio Juan

Dias antes do Natal, tio Juan entrava trazendo a árvore verde. Um pinheiro, onde a avó, a mãe e as tias penduravam "dulces y galletitas" e também "borrachuelos y mantecados". As crianças eram então chamadas e avisadas que "los dulces y las galletitas y los borrachuelos y los mantecados" só poderiam ser comidos em "la noche buena". E a nossa casa passava a cheirar adocicado, enjoado.<br><br>Mas Juan, sentado na cadeira treze, dizendo-se um pirata sangrento, "Juan, el trece", que vivia dentro da casa disfarçado de tio, prometia atacar a árvore e repartir doces no esconderijo secreto. Em troca, nas noites de luar, assobiava comprido pedindo pelas roupas secas já que nadava, escondido, no rio Tamanduatei, desobedecendo ordens severas. Avisava ao da boca-mole, o da língua-grande, que desses "Juan, el trece" fazia a pele, "mismo que mil años se pasasén y otros tantos miles llegasén!".<br> <br>Como prêmio, aos domingos, disfarçado de tio, carregava a criançada da casa para os jardins do Museu do Ipiranga, ensinando-os rolar e pisar na grama, cuspir e fazer caretas para a placa “É proibido", afirmando que "la grama , cuando nasció, cien años tenia yo!" Nos chafarizes, onde anjinhos mijavam água em filetes, aquele ali gostava de entrar e bailar flamenco, dando vivas "a la libertad!". Muitas vezes um guarda apitava lá longe e eles se espalhavam pelas alamedas dos jardins. Os guardas regulavam a nossa liberdade…<br><br>Lá dentro da nossa casa, onde só nos era permitido entrar pelos fundos, pelas aberturas das cercas, pelos vãos dos arames farpados, aquele ali pegava ovos crus na cozinha para furar com alfinetes. Os ovos eram oferecidos às crianças e aquela que não tivesse medo de tentar e de experimentar chupar ovos crus, e nem de levar outra vez para o lugar aonde foi tirado, esta era por ele declarada livre.<br><br>Queria tanto ser livre! Achava a liberdade a melhor coisa deste mundo! Só que era difícil de tragar, era dura de ser engolida!<br><br>A avó, esta chamava tio Juan de Juanito. Vivia prometendo-lhe cada "paliçon" que o tio se "acuerdaria hasta del dia en que nasció!". Um dia, a avó chorou quando foi fazer "unas tortillas" e abriu ovos ocos. Praguejou, ameaçou e xingou o tio. Atirou-lhe um chinelo. Intimou-o a afastar-se das crianças. Proibiu-lhe todas as brincadeiras. E o tio, então, ficou muito sério. Falou em direitos, contou das liberdades todas e afirmou que estas poderiam perder-se dentro de leis injustas e de ordens absurdas e muitas vezes para todo o sempre. <br><br>O tio morreu num domingo. Um domingo frio e cinzento e ela não entendeu porque foi emparedado e cimentado. O pedreiro ficou alisando a parede, fechando as aberturas com muito cuidado. Depois, todos se foram chorando muito, só que o nosso tio, que era tão bonito, tão livre, tão solto, que tinha os cabelos negros cheios de caracóis, foi deixado do outro lado da parede quadrada, feia, áspera, cimentada. A parede onde se recusou a colocar a flor. A flor, depois jogou no rio Tamanduatei, e a flor saiu boiando.<br><br>Nossa casa ficou triste, vazia, silenciosa. As crianças tornaram-se medrosas e ela, que não pisou na grama, não dançou em chafariz e nunca teve coragem de experimentar um ovo cru, jamais foi declarada livre.<br><br>"Juan, el trece", o pirata sangrento que morava em nossa casa disfarçado de tio, este ninguém mais viu. Era falso, jurou-lhe uma das tias, o tio mentia, "Juan, el trece" nem existia.<br><br>A avó pegou a cadeira treze e colocou-a em um dos cantos do quarto. Em cima da cadeira treze ficou a foto do time de futebol do tio, de várzea. E o tio, abraçado aos amigos, a bola descansando nos joelhos, preso dentro da foto, ficou sorrindo em preto e branco. Estava enquadrado. Para sempre. <br><br><br>E-mail: [email protected]