Simplesmente o sapateiro

Por volta de 1980, num sábado, acompanhado de meu filho, resolvi dar umas voltas pelas ruas da Vila Nair, Ipiranga. Ah! Eu já tinha um carro… Que grande conquista, hein?

Percorremos a maioria das ruas… Estavam diferentes do início dos anos 60. Asfaltadas. As casas, algumas, permaneciam com as mesmas fachadas, muitas descoradas; outras, reformadas. Mas a memória lembrava das pessoas, dos amigos, das famílias que ali haviam residido.

A Rua Lúcia havia sido, naqueles tempos, o melhor meio de se atingir o ponto Fábrica. Fomos até o final, ou início da mesma; não sei… E lá estava o campo do Centenário F.C., onde o aqui pretenso zagueiro disputava partidas de futebol no meio de um lodaçal; ou de um "gramado" sem grama que era somente um amontoado de lama endurecida. Mas permanecia ali, revivendo partidas e lances que nos faziam sonhar heróis ou vilões resultados.

Havia alguns garotos batendo bola e quando nos preparávamos para ir embora, uma pessoa cruzou a nossa frente. Apontei para meu filho e disse:
– Olha a esposa de seu João!
Em fração de segundo, caiu a ficha: não era a esposa de seu João, mas sua filha! O tempo havia passado e naquele devaneio não havia me dado conta.

Seu João, senhor João Gelev, descendente de rumenos, era um sapateiro que tinha sua pequena oficina na Rua Lúcia, logo abaixo do bar de Dna. Gioconda, onde assistíamos na televisão os jogos do Campeonato Paulista.

A Oficina de seu João era um ponto de encontro da rapaziada. Local apertado, um banquinho de madeira… E a todos dava atenção ouvindo bravatas e rindo. Fumava "Fulgor ovais", uma cartela azul que mantinha ao alcance das mãos. Tinha um isqueiro (binga) com que tornava acender as bitucas que iam se apagando, quando as esquecia num canto de sua mesa de trabalho.

Recebia os pares de sapatos, na maioria das vezes, em péssimas condições, tomava-os nas mãos, analisava o trabalho a ser feito, se era ou não possível executá-lo e dava o orçamento. Meia sola… Remendo… A prego… Costurado…

Ele muito se orgulhava de uma máquina para costurar couro que havia adquirido de outro sapateiro conhecido.Poucos remendões tinham igual.

Tomava o calçado na mão, conferia se a "vira" suportava a nova sola e partia para as medidas e corte da mesma. Peça de couro duro, que com uma pequena faca feita de folha de serra larga, cortava no tamanho aproximado. Mergulhava a mesma numa lata com água, até que no dia seguinte, começava a batê-la com um martelo próprio numa peça de ferro, que apoiava nos joelhos… A operação se repetia até ter a consistência requerida.

Os meus sapatossempre descalcanhavam, pois tinha preguiça de desamarrá-los e, consequentemente, eram danificados… Não, eu não tinha dois pares, não. Por isso, quando a situação ficava ruim, lá ia eu pedir: “Seu João, preciso sua ajuda”. Uma pequena bronca. “Deixa aí que eu vou ver o que faço”. Sempre fazia.

A chuteira dos "craques" de nosso time também eram ali consertadas. Os cravos de couro pregados na sola do único par de chuteiras pouco resistiam aos "gramados" onde atuávamos, e os pregos acabavam fazendo buracos nas solas de nossos pés. “Deixa aí, depois eu vejo o que fazer…”.

A Bola, a preciosa bola de nosso time, era ele quem consertava. Resmungando, mas consertava. Um barbante que fazia correr num pedaço de cera de abelha, uma agulha grossa e curva… E pronto.

Algumas vezes ele nos expulsava da sua oficina. “Vão embora! Tenho muito que fazer e vocês ficam me atrapalhando!”. Havia um motivo, que depois, acabamos descobrindo…

Sua esposa, uma senhora portuguesa, e sua filha, iriam passar pela oficina em direção ao ponto Fábrica. A mulher tinha uma aparência de brava que realmente justificava o comportamento de seu João.

Trabalhava muito, lutando horas e horas para dignamente ganhar o seu dinheiro e construir com muito aperto sua pequena casa, num terreninho no fim da Rua "Cabonha". Mas conseguiu, não esperando pelas benesses do assistencialismo demagógico que hoje impera.

Um personagem que minha memória preza e respeita.

E-mail: [email protected]