Sem olhar a quem

Passando pelo Viaduto do Chá uma tarde, de repente vimos grande ajuntamento de pessoas na amurada, olhando pra baixo. Gritos, confusão. Um homem acabara de pular dali pra baixo, e jazia estatelado no chão, pernas e braços abertos.

Eu passava com minha filha, que na época tinha 11 anos. Queria levá-la dali o mais rápido possivel, porém ela era (e é) curiosa e decidida, foi também olhar pra baixo e viu o rapaz caído. A reação dela foi uma surpresa pra mim:

“Mãe, vamos ficar aqui mais um pouco que a gente vai aparecer na televisão!” (Pois já uma emissora de TV chegava para cobrir o ocorrido.)

Puxei a Deborah pela mão ao mesmo tempo que explicava para ela que o que acontecera era muito triste, não um motivo para permanecermos ali no Viaduto do Chá esperando ver nossas caras na TV. Ela, no entanto, insistia, queria fazer parte da comoção toda.

O ajuntamento era grande, todos falavam ao mesmo tempo, a polícia tentava afastar a multidão. Uma senhora ao meu lado disse:

– ‘Ele era um rapaz jovem. Várias pessoas tentaram impeder, mas ele pulou. Eu vi tudo!’ E chorava.

São Paulo tem destas coisas. Você está andando calmamente pelo centro quando uma coisa destas acontece. Ainda bem que não é muito comum, mas que acontece, acontece. E não é possivel impedir os filhos de ver suicídios se eles acontecem numa tarde de sol na sua frente. O que é possivel fazer é não deixar que um descaso pela vida humana se apodere da mente das crianças. Por isso puxei minha filha para longe, não permiti que ela fizesse daquilo um momento de interesse. E falei com ela, explicando que muitas vezes não sabemos o que leva uma pessoa a se desesperar da vida desta maneira, mas que ele era uma pessoa muito importante para alguem, e que vai deixar muita tristeza na vida destas pessoas.

Não sei se ela entendeu tudo, mas ficou bem quieta, pensativa. Mais tarde me falou:

– “Ele tinha mãe, eu acho.Ela deve estar chorando. Ainda bem que eu não apareci na TV olhando lá de cima.”

A Deborah ficou quieta mais ou menos uma semana e depois voltou a ser irriquieta e levada como sempre. Acho, porém, que ela nunca esqueceu o que vimos do alto do Viaduto do Chá, como eu tambem não esqueci.

O que teria levado este jovem a pular do viduto? Seriam problemas com dívidas, falta de emprego, decepção amorosa, problemas de familia? Será que com alguma ajuda, que não foi dada, ele não estaria vivo até hoje? Sinto-me bastante responsável por ajudar a pessoa que passa a minha frente na vida, às vezes precisando de uma palavra amiga, um consolo, um gesto de amizade, um almoço pago, uma pequena ajuda, seja qual for, que pode, no meu entender, fazer a diferença entre o desespero total que pode levar a coisas deste tipo. Se cada um de nós fizesse a sua parte, acho que São Paulo seria uma cidade mais humana. Creio também que existem oportunistas de montão que se valem da bondade alheia, mas fica meio difícil distinguir entre uma necessidade genuína e um aproveitador. Prefiro não arriscar. Acho bom fazer o bem sem olhar a quem.

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