Eu estava interessado em aprender a desenhar. Achei um lugar, na Rua Augusta, chamado "De Arte". Era uma residência antiga transformada em núcleo de ensino para desenho e pintura. Lembro-me do primeiro dia que lá cheguei, ao entrar, senti de imediato a olência acre das tintas. Gente ocupada em desenhar e pintar. Ao passar ao lado de uma sala, observei de soslaio, mas com olhos especulativos, alguns jovens a desenhar tendo como modelo uma jovem completamente nua. Absorto com a imagem da bela mulher despida esqueci-me por um segundo de tudo que poderia ser importante na vida.<br><br>Depois de inscrever-me para aulas, o senhor Taddei fez-me acompanhá-lo em um "tour" pela casa. Em um dos cantos de uma sala maior, o pintor Aldo Bonadei ocupava um pequeno espaço como sua oficina de trabalho. Mostrou-me alguns quadros do famoso pintor. O "De Arte" era, sem dúvidas, um lugar interessante.<br><br>Nos dias em que seguiram acabei conhecendo uma jovem aluna de pintura em porcelana, a Lilian. Saímos juntos algumas vezes e isso foi o bastante para ela me apresentar aos seus amigos. O Alfio, namorado de sua irmã e o Tom e sua namorada. O Alfio tocava violão e o Tom contrabaixo. Como eu arravanha no piano, nos juntávamos na casa do Alfio para tocar. Éramos amantes quase do mesmo gênero musical e isso tornava as coisas mais fáceis. Nossas reuniões eram aos fins de semana, pois quem não estudava, trabalhava.<br><br>Além de música, o Alfio gostava de teatro. Ele estava procurando o seu caminho para trabalhar como ator. Lembro-me de uma vez, em um barzinho na Rua Avanhandava, ele e eu estávamos a papear sentados numa mesa do lado de fora do bar, quando apareceram dois amigos do Alfio. O falecido Raul Cortez e o Sergio Mambertti. Todos jovens e aspirantes ao teatro. Ninguém era famoso naquela época. Conversávamos de tudo um pouco.<br><br>Em um daquele dias de "encontro musical", chegando à casa do Alfio, ele veio rápido ao meu encontro e todo sorridente:<br>- "Anthony, quero te apresentar este meu amigo Americano Oliver Smith”.<br><br>O Oliver era um crioulo de 1.90m. E eu sempre pensei que eu fosse alto com os meus 1.80m. Vestia-se dentro de um terno de botão transpassado, em tecido "Príncipe de Gales". Sua camisa alva, branca imaculada. Usava uma gravata azul-marinho. Seu sorriso exibia uma arcada dentária de fazer inveja. Seus olhos eram claros. Duas covinhas completavam aquele rosto simpático, charmoso comparável aos atores de cinema. Até aquele momento da minha vida nunca havia visto um crioulo daquele calibre. Mascava chiclete discretamente. Senti-a o perfume delicado de sua loção. Movia-se como um perfeito “gentleman”.<br><br>Apresentou-se com um aperto de mão e, como não poderia ser diferente, começamos a conversar em inglês. Fomos sentar. Ninguém ali poderia entender muito do que o Oliver falava e perguntava, pois o forte dos meus amigos não era o inglês:<br>- “Anthony, obrigado por vir nos salvar” – disse a Lilian.<br><br>Enquanto o Oliver dava atenção às duas garotas, chamei o Alfio de lado e perguntei:<br>- "Ei, quem é a "peça"?”<br><br>De acordo com o Alfio, o Oliver havia sido convidado pela atriz Ruth de Souza e estava hospedado na casa dela. Eles se conheceram em um desses festivais de cinema na América. Ele escreveu um livro. Na verdade, o Alfio não sabia muito a respeito daquele negro "super-homem". <br><br>Estava perto de me despedir quando o Alfio pediu-me que levasse o Oliver de volta para casa da Ruth. Eu guiava um Renalt-Dauphine, um dos mais ineficientes carros da engenharia francesa. Pertencia ao meu pai. Foi uma pequena tragédia acomodar o Oliver naquela coisa chamada automóvel. Depois de um "pequeno" muito esforço, Oliver conseguiu sentar-se. Seus joelhos ficavam mais alto que o painel. O pessoal começou a rir. Dei a partida e fomos direto para a casa da Ruth, um apartamento na Rua Jacareí.<br><br>Subimos até o segundo andar. Ruth mostrou-se sorridente ao nos ver. Apresentei-me. Seu apartamento era pequeno, mas bem arrumado e decorado com muitos motivos brasileiros. Em um canto exibia alguns prêmios e especialmente do filme "Sinhá Moça". Ela descalça, puxava-me pelo braço mostrando pequenos adornos da casa. Tratava-me como se eu fora um velho amigo.<br><br>Para mim, era uma honra conhecer uma artista talentosa e famosa como a Ruth. Ela havia preparado alguma coisa para comer e saboreamos a comida e o alegre bate-papo. Ela era simples e não dava mostras do quanto sabia em termos de atriz. Gostei dela demais. <br><br>Nos dias que correram, levei o Oliver para conhecer um pouco da cidade. O Alfio mandou me avisar, através da Lilian, que eu deveria ajudá-lo como interprete para o Oliver em uma reunião de um movimento negro a realizar-se em um pequeno teatro. Falei com o Alfio. Ele disse que o Oliver gostaria de participar, mas eu deveria levá-lo. A reunião foi numa sala de teatro do SESI. Montaram no palco uma mesa com seis cadeiras voltadas para a platéia. O publico completamente lotado. O Oliver sentou-se ao meu lado em uma das cadeiras do palco.<br><br>Para dizer a verdade, eu não me senti muito a vontade. Não tinha a menor idéia de que movimento era aquele e tudo mais. Bem resumindo, o responsável sentado no centro da mesa deu início à palestra. O Oliver ávido em saber do que esta acontecendo. Na medida do possível eu fazia a tradução, que não era "sopa". Todos falavam juntos e era difícil acompanhar aquela reunião.<br><br>Falavam dos direitos da raça negra e coisas afins. O Oliver algumas vezes ficou indignado com a tonalidade pacífica dos assuntos abordados, pois era extremamente diferente do comportamento dos americanos. Eu já estava meio cheio daquilo tudo, apesar de que o assunto para eles era importante. Finalmente tudo acabou, mas não para o Oliver. Ele gostaria de dizer da sua opinião ao presidente da banca, mas eu acabei cortando suas intenções ali mesmo.<br><br>Ufa, não via à hora de levar o Oliver para casa da Ruth. Quando lá chegamos a Ruth, sempre sorridente, perguntou a respeito e o Oliver deu-lhe suas respostas. A Ruth tinha um bom inglês.<br><br>Minha família de italianos tinha o hábito de que a cada domingo fazer um almoço em uma das casas da família. Em uma delas levei o Oliver. Depois de "empacotá-lo" na pequena e inconfortável viatura francesa, fomos direto a casa de minha tia Bianca na Rua Rodrigo de Barros. Um casarão antigo mais confortável. O Oliver sentou-se na cabeceira da grande mesa que acomodava oito adultos e quatro crianças. A família tratou-o como um príncipe. Ele comeu frango, ravióli e tudo mais em sua frente. Comeu como se fora a sua última refeição na vida. Em casa de italiano quanto mais você come, mais bem-vindo você é.<br><br>No domingo, na casa do Alfio, em uma das nossas paradas musicais, o Oliver puxou-me para um canto. Tinha lágrimas em seus olhos. Disse-me:<br>-“Anthony, eu preciso e preciso já” – não sabia do que o Oliver estava falando.<br>-“Anthony eu preciso. Por favor, me arranje um pouco… Por favor”.<br><br>Eu fiquei sem saber o que dizer. Puxava-me pela camisa agora chorando como uma criança faminta:<br>-“Eu não tenho e não vou conseguir isso” – disse-lhe seriamente.<br><br>Ele insistiu e eu acabei tirando suas mãos de cima de mim. Deixei-o ali naquele canto da sala e fui ter com a Lilian. Ninguém sabia o que estava acontecendo. Expliquei em rápidas palavras.<br><br>Dois dias mais tarde, a Ruth foi ao meu encontro no "De Arte". Ao entrar, deu-me um beijo na face. Pediu-me desculpas, dizendo que a situação já estava controlada. No dia seguinte, encontrei-me com o Oliver e ele também se desculpou. Nesse dia ele estava usando um casaco três quartos, de tecido leve, igual ao do seu terno. Pediu-me que o levasse ao Mappin. Isto era simples. Estacionei o carro na Praça da República e caminhamos pela Rua Barão de Itapetininga até a loja.<br><br>Eu não sabia bem em que ele estaria interessado em comprar. Ele andava calmamente como se estivesse à procura de algo específico. De repente ele pegou um objeto e colocou num dos bolsos internos daquele grande e confortável casaco. Fique hirto. Eu deveria estar pálido. Olhei para os lados:<br>-“Oliver, você esta louco?” (“Are you crazy?”)<br>- “Anthony, não se assuste. Veja este casaco foi feito especialmente para isso”.<br><br>Mostrou-me os diversos bolsos internos costurados de maneira a encobrir este tipo de roubo. Sem pestanejar, ele continuou a rondar pela loja e metendo coisas dentro do casaco. Eu não tive outra solução:<br>- “Desculpe-me Oliver, mas vou deixá-lo aqui mesmo. Você sabe como chegar até a Ruth”.<br><br>Virei às costas e em um salto ganhei a porta de saída. Minhas pernas estavam tremulas imaginando que alguém da loja poderia nos prender.<br><br>Alguns dias se passaram. Eu estava no "De Arte", quando a Ruth entrou chorando procurando por mim. Deu-me um forte abraço. Não podia conter as lágrimas:<br>-“Anthony, por favor, me ajude”.<br><br>Contou-me que ao deixar seu apartamento, Oliver estava completamente alterado (pelo uso de entorpecentes) e violento, jogando coisas para o ar e dizendo impropérios. Juntei a Ruth pelo braço e seguimos direto para seu apartamento. No caminho eu pensava como eu poderia enfrentar aquele bruta homem e além do mais alterado.<br><br>Quando lá chegamos, Oliver estava semi deitado no sofá. Ruth foi para cozinha fazer um café. Sentei ao lado dele e comecei a conversar. Expliquei que ele poderia ser preso pelo seu comportamento. Estava esperando uma forte reação, mas não veio. Ele continuou calmo e me escutava. Seus olhos brilhavam além do normal. Depois de muita conversa e café, ele começou a chorar e a pedir desculpa. Despedi-me da Ruth oferecendo minha ajuda.<br><br>Soube dias mais tarde que o Oliver havia retornado aos Estados Unidos, donde viera. Foi uma aventura, mas foi bom quando terminou. O Oliver Smith não era um escritor, mas um dependente químico e ladrão refinado de lojas<br><br><br>E-mail: [email protected]