São Paulo tem muitos bairros. Um deles, a Bela Vista e, inserido dentro dele, o Bixiga (que eu não diria ser um sub bairro, isto é, um bairro dentro de outro bairro).
O Bixiga é uma instituição cultural de uma tradição remota desde meados do século XIX, antes denominada como Bexiga, de um certo senhor Manoel, dono de uma estalagem no antigo largo do Piques (ou Picles), onde hoje está a praça das Bandeiras.
O senhor Manoel Bexiga, latifundiário de extensas glebas de terra onde hoje se situa o bairro da Bela Vista (boa parte do bairro) e, após transformá-las em loteamento, deu origem ao referido bairro.
Adoniran Barbosa (notório compositor), simplificou e tipificou o então Bexiga para "BIXIGA" (de pronúncia mais solta e fácil, eu concordo).
De ruas como São Domingos, Cons. Ramalho, Manoel Dutra, Major Diogo, 13 de Maio, João Passalacqua, Rui Barbosa etc., destaco uma que, para mim, tem um significado bastante pessoal. Falo da Rua Santo Antonio, que inicia na Praça das Bandeiras e termina na Rua Conselheiro Carrão X Almirante Marques de Leão.
Posso considerá-la como uma espinha dorsal, visto que seu trajeto é rota obrigatória aos que pretendem alcançar o bairro do Bixiga.
A importância desta artéria para mim é significativa, pois me criei lá, no quarteirão mais movimentado do bairro, que compreendia a viaduto Martinho Prado (sobre a Avenida Nove de Julho), até o local denominado "Cinco Esquinas" (que compreende as ruas Santo Antonio, 13 de Maio, São Domingos e Delegado Everton).
Nas décadas de minha infância, pude desfrutar das alegrias das brincadeiras de rua (pula-sela, mãe-da-rua, cachuleta, pique-esconde etc.). Morava em uma casa (onde hoje é um restaurante italiano – claro, só poderia ser), de construção moderna para os padrões da década de 30, com platibanda de beiras entalhadas que escondiam o telhado de telhas "coxas de escravos", portais duplos, embandeirados com vitrais trabalhados, janelas em igual padrão. O soalho, também característico, de tabuado largo com rodapés largos ao rés do chão.
A Rua Santo Antonio não se diferenciava das demais do nosso ou de outros bairros, mas era lá que me sentia feliz. Tínhamos o velho campo do Bôca Juniors, onde podíamos jogar nossas "peladas" na quadra de futsal. Ao fundo da quadra havia duas baias de bocha, limitadas pelo talude que dava para a Nove de Julho.
As pessoas que complementavam nossa população "quarteirana" eram o Tito, Jamil (delegado), Belém, Amadao, Seu Benjamin. Eram todos descendentes de sírios ou libaneses e tinham seus comércios, em geral um empório ou mercearias, como queiram. Havia outros mais.
De uma das tradicionais cantinas de lá, a "Il Cacciattore" é a mais decana e era administrada por um senhor de meia estatura com um característico sinal particular (um pequeno aprofundamento bem no meio da testa). Ao lado da cantina, a casa de meu grande amigo Aniello, tapeceiro de mão cheia, artesão na confecção e forração de sofás e poltronas.
Ainda da cantina, havia um garçom (baixinho, lembrava muito o repórter "Tico-Tico") e que também tinha o sugestivo apelido de um passarinho, não me recordo agora, mas deveria ser "Papa-Capim", sei lá. Era casado com uma senhora morena muito bonita, com traços hispânicos e que pouco aparecia na rua. Muito afeita às prendas do lar, costurava para as senhoras da região.
Dona Conchetta, italiana que morreu quase centenária, tinha quatro filhos (dois homens e duas mulheres), que não se casaram. O mais velho, Luigi, era barbeiro. Giulio, alfaiate (gostava de charutos). As duas mulheres, nem pra titias ficaram. Quando da morte da velha matriarca, mudaram-se para o Glicério e de lá para mundo das almas. Eram boas pessoas e me deixam muitas saudades.
Em frente ao campo do Bôca havia a Lavanderia Popular, de um português (pode…), e a figura folclórica do "Negão", seu entregador, que enchia o cesto da bicicleta de roupas já lavadas e passadas para suas entregas, retornando sempre com outro fardo para lavar e passar.
Irremediavelmente, o Negão "bicava" umas "branquinhas" a cada viagem de entrega ou retorno, mas nunca perdeu o equilíbrio da velha bicicleta.
O velho Buscchinni e sua família, Taquinho, Ariosvaldo e Aristeu, o "doido" Moacyr, Genarinho "o invocadinho", o pessoal da família Avoleta (hoje espalhados pelos interiores de São Paulo), meu forte e sempre amigo Jose Mendes Poletti (o Natal), que, embora não morasse no quarteirão, era figura constante em minha casa e eu na dele.
Uma figura bastante folclórica e muito conhecida do local foi o meu velho e querido tio Rafael. Bicho doido, divertido, encantava as pessoas com o seu jeito original de ser. Conhecia todas as marcas e modelos de automóveis que passavam à nossa porta. Acertava o tipo de motor, número de cilindros, hp's, ano de fabricação etc. Com ele dei meus primeiros passos na mecânica automotiva.
As saudades da minha velha e querida Rua Santo Antonio é muito grande que, antes de deixá-la com destino a Bahia (isso em 1973), ainda pude testemunhar a dilaceração por qual passou com a construção do tal minhocão (o prefeito Faria Lima foi o responsável).
Com essa transformação muitas casas, amigos, lembranças, sucumbiram nos escombros das demolições. Até o campo do Bôca teve seu destino interrompido com o "avanço do progresso".
Navegando pela internet e visualizando por satélite, posso ter um panorama do quanto o meu velho Bixiga tem se transformado.
É certo de que, quando eu retornar para lá, com certeza não encontrarei muito dos que dividiram comigo boa parte de minhas alegrias e preenchem minhas saudades. Alguns já se foram para o outro lado. Outros mudaram-se para outras localidades. Espero não ser difícil encontrar os que permaneceram, agora no convívio da "nova geração Bixiguense". Terei de passar no museu do Armandinho e "garimpar" as velhas reminiscências.
Aos que ainda "resistem" e possam ter conhecimento desta minha narrativa, sou o Nelson, filho do velho Fernando e da dona Maria, sobrinho do "tio doido" Rafael, amigo do Vicente Sesso, do Marquinhos (filho do Vicente), primo distante do Agostinho dos Santos, enfim, Bixiguense de corpo e alma.
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