Sempre foi minha tia favorita. Baixinha, inteligente, dava aulas de francês e matemática e tocava piano com maestria, especialmente Chopin. Cozinhava muito bem e tinha sempre um bolo esfriando na cozinha prontinho para a gente tomar com café à tarde. Lembro-me bem dos janelões abertos para a rua e Chopin se derramando para todos os cantos da casa, enquanto eu sentava no sofá da sala comendo meu pedaço de bolo ainda quente e ouvindo minha tia tocar. Eu gostava muito de ouvir Chopin tocado por ela, com tanta desenvoltura e ligeireza, embora nunca desejasse aprender piano por mim mesma.
Tia Dora era alegre, barulhenta, um pouco encrenqueira, fazia amizades e inimizades com a mesma facilidade. Sabia discursar sobre qualquer assunto, seja religião, política nacional ou internacional, ou fazer comentários cheios de humor sobre a vida dos outros. Era engraçada, contava casos e histórias, reais e inventados. Eu acreditava piamente nela, especialmente numa história sobre uma fazenda que ela dizia ter e sobre todos os animais que ela dizia criar nesta fazenda imaginária, mas para mim, tão real.
Aos fins de tarde sentávamos no quintal, eu brincando com um fogãozinho à lenha em miniatura, e ela contando casos, parando um pouco para ir buscar sanduíches de ovo com tomate para nós duas ou uma tal de ‘rivolta’, uma panqueca italiana que ela sempre fazia.
Estava sempre sem dinheiro e usava dos mais diversos truques e malabarismos para conseguir algum, nunca, porém, recorrendo a atos desonestos. Dava aulas, pechinchava nas lojas, corria a buscar comida com o dinheiro da minha avó quando a situação política do país ficava mais feia, dizendo que a guerra não deveria demorar. Assim, enchia os armários da casa e a guerra nunca vinha.
Uma ocasião um vendedor de joias bateu à sua porta na Rua Nilo. Minha tia olhou tudo, deixou que ele abrisse todos os rolos e mais rolos de veludo preto contendo colares, anéis, brincos e pendentes. Quando o vendedor já estava certo de que tinha feito uma venda, tia Dora anunciou que não tinha dinheiro de jeito nenhum e que não iria comprar nada. O vendedor, inconformado, disse que ela poderia pagar por mês, que faria um abatimento, isso e aquilo, e ela insistindo que não tinha dinheiro. Ele insistiu tanto também que ela comprou um colar e um par de brincos. No próximo mês, quando o vendedor voltou para receber a primeira prestação, tia Dora o recebeu com um ar de surpresa:
– Ué, eu não falei que não tinha dinheiro? O senhor não quis ir embora sem vender, mas eu falei que não tinha como pagar…
E devolveu as joias, que ela já havia usado em um casamento. Tia Dora tinha umas certas malandragens.
Quando vim morar fora do país a visitei todos os anos, sempre levando uma lembrancinha, geralmente uma roupa, uma bijuteria ou um livro. E ela:
– Ah, você sempre se preocupando comigo…
Eu sabia como ela gostava de roupas bonitas, colares. Livros de poetas brasileiros, cadernos, nos quais escrevia receitas, nos quais ainda estudava francês e português quando já contava quase noventa anos. Com toda esta idade seu cérebro era ainda verdinho e vivaz, ela ouvia as notícias todas as noites e depois sabia discutir com muita inteligência e perspicácia o vai e vem da política tanto do Brasil quanto do mundo.
Em setembro de 2008 meu filho esteve em São Paulo, e quando voltou eu perguntei a ele se havia visitado a tia Dora. Ele só me disse que não. Estranhei.
Minha visita ficou para dezembro. Ao chegar em São Paulo, a notícia me esperava: Tia Dora havia partido. Em agosto. Ninguém me contara nada, sabendo o quanto eu iria sentir, aqui do outro lado do mundo.
O presentinho dela ficou num canto, dei para outra pessoa, nem sei direito para quem. Fui até o apartamento onde ela havia morado, na Rua Apeninos, vi seu quartinho vazio, seus caderninhos empilhados. Ah, minha tia, nem pude dizer adeus.
Aqui fica a minha homenagem para você, a quem amei de fato.
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