Primeiro tempo

Idealista, eu saía de casa com a energia máxima que um jovem coração poderia carregar. Na maioria das vezes, eu saía apressadamente da universidade e ia direto para o meu local de trabalho, muito especial. Especialíssimo. Eu estava começando a lecionar para adultos.
 
Com vinte anos eu acreditava piamente que mudaria o mundo. Os meus sonhos tinham um ar de concreto, de infinito, de ensolarado. Aqueles alunos, a maioria com seu mísero salário mínimo, tentavam ir ao encontro de mais conhecimento para um emprego futuro com mais possibilidades de progresso.
 
Amigáveis pessoas! De escrita rudimentar, tentavam sempre e não se escondiam atrás de problemas aparentemente insolúveis. E me contavam que haviam ficado para trás, enquanto tantos colegas do passado eram profissionais talentosos, de sucesso.
 
Em plena Rua Vinte e Quatro de Maio, prédio dos mais antigos, funcionava esse curso supletivo. Eu fazia questão de, minutos antes do início da aula, me aproximar da janela e perceber a poesia naqueles passos e corações acelerados que desfilavam por aquela rua central. De todas as cores aquele pedaço da cidade se exibia, em exuberância e franqueza.
 
Ali na esquina eu compraria um exemplar de algum jornal ou revista proibido pelo governo. Sim, eu levaria o meu envelope ou a minha pasta com elástico e, rapidamente, colocaria lá dentro o exemplar do Fradim, do Pasquim ou do Movimento. Eu teria que esperar sair o pagamento e fazer a minha compra especial, necessária para um pouco mais de entendimento do funcionamento do sistema. Só faria a leitura em casa, trancada, e em alguma segurança. Em 1979 ainda era isso. Comprar as revistas antes que as bancas fossem pelos ares depois de incendiadas pelo Comando de Caça aos Comunistas, que gostavam de exibir as suas iniciais na frente do espaço de ganha-pão roubado daqueles comerciantes.
 
E a resposta mais comum daqueles jovens, dos meus alunos, era uma mistura. Mistura de trabalho, esforço, esperança. E busca. Muita busca. Em especial, pelo direito.
 
À noite, eu saía dali literalmente correndo. Se o elevador – antiquíssimo elevador – falhasse, eu ia de escada, observando com uma pressa histérica a construção, os detalhes, a arquitetura refinada. Gostaria de ser mais detalhista, confabular com o passado, com os operários daquela construção, que não havia mais.
 
Mas eu corria para atravessar a República, com um medo alucinante do eventual ataque de um gatuno enfurecido pela miséria ou pela droga. Esse medo neurótico foi-me ensinado em casa. Fui, obviamente, uma pessoa carregada de um medo insano até que os meus rins urraram tantas vezes, empedrados.
 
O ponto inicial do ônibus ficava no início da Rua do Arouche. Eu voltava para casa sem olhar para os lados tamanha a “paura”, mas eu voltava pensando naqueles alunos, nos seus sonhos, histórias de fracassos e tentativas de vitórias.
 
Eles redigiam. Não tinham preguiça e não arrumavam desculpas. Eram vivos e não sombra de uma tecnologia que ainda não havia. Eram pessoas inteiras, prontas, respeitadoras.
 
Agradeço a todos vocês. De coração cheio de ternura, guardo o reconhecimento pelo nosso esforço comum de ajudar a mudar algumas histórias, darmos uma faceta menos rude às nossas vidas. Agradeço a consideração, o respeito, as trocas de saberes, os textos redigidos a duras penas. Quando eu saía correndo da universidade ou da redação do jornal alternativo, eu ia decidida, sem vacilar, de olhos abertos e a plenos pulmões, me alimentando muitas vezes de um pão com manteiga sem café para entrar em sala. E vocês estavam lá. Sempre estiveram lá. Prontos para viver, construir e fazer do esforço a beleza de uma juventude a ser reconstruída… Naquele tempo.