Pelintra, um cavalo pescador

Esta é uma das estórias que não aconteceu comigo, porém acredito piamente na mesma, uma vez que me fora contada por Dona Benedita.

Dona Benedita hoje é uma senhora setentona sacudida dentro de seus quase noventa quilos. Descendente de índios, negros e portugueses, nascida e criada durante muito tempo no interior de São Paulo, lá pras bandas de Itaquaquecetuba. Casada com o seu João Coutinho, caminhoneiro famoso da região de Itaquera, teve vários filhos, e dentre eles uma especial, de nome Paula, que é a mãe dos meus filhos.

Aconteceu no Sítio do Pinheirinho, de propriedade do João Coutinho, em Itaquera.

O sítio era famoso nas rodas de conversa fiada dos finais de tarde, não por sua grandeza, produção de leite, ou qualquer beleza natural, mas principalmente pelo seu pequeno lago, ou melhor, pelo grande peixe que vivia há muitos anos em suas águas e que jamais fora fisgado ou visto de corpo inteiro. Alguns afirmavam que em finais de tardes de verão já tinham visto parte de calda do bicho batendo no espelho da água, que respingava até fora do lago.

Seu João nunca permitiu a pesca naquele lago, mas em algumas conversas em seu armazém, entre uma cerveja e uma pinguinha, confessou para seus compadres mais próximos que já tinha visto o peixe na flor da água em muitas ocasiões de noites de lua cheia.

Foi no verão, num mês de janeiro bastante chuvoso, quando a água do lago transbordou, vindo dar próxima à soleira da casinha onde ficava o tanque de lavar roupa da dona Benedita, que o ocorrido se sucedeu. O quarador (gramado onde a roupa ensaboada era estendida para quarar) ficou submerso em mais ou menos um palmo de água, e por sobre a lâmina desta água brotavam os tufos verdes da grama.

Pelintra, o cavalo do sítio, que não se sabe dizer ao certo se era um cavalo ou um daqueles super burros da região (mistura de éguas de grande porte com jumentos espanhóis), encontrara o lugar ideal para pastar. Com as patas refrescadas dentro da água saboreava os tenros brotos da grama que ali cresciam.

Naquele dia Dona Benedita estava no tanque, batendo roupa com as costas viradas para o lago, quando foi surpreendida por um estardalhaço, e ao virar rapidamente a cabeça para verificar o motivo do barulho notou, de relance, um grande vulto, como um pedaço de tronco, atirado em sua direção. Com muito reflexo e agilidade (na época ela não pesava os "noventinha" de hoje), ela desviou a cabeça daquela tora, que bateu na parede do rancho e caiu dentro do tanque.

Surpresa mesmo ficou quando a tora, de imediato, começou a debater-se, jogando a água do tanque para todos os lados. Ela gritou pelo seu João, que já veio de foice em punho (ele tem esta foice até hoje debaixo de sua cama) e "tascou" a mesma dentro do tanque, e aí foi só sangue, água e sabão.

Não acreditando no que estava presenciando, seu João pediu para a Dita (como ele carinhosamente a chamava) confirmar o que ele estava vendo e ela confirmou. Era uma Traíra Guaçú, de aproximadamente uns oito quilos; o bicho devia ter mais de dez anos.

Pelintra não parava de correr e pular sem parar quando seu João conseguiu segurá-lo, e naquele momento notou que muito sangue escorria do focinho do cavalo. Dona Dita limpou o beiço do Pelintra com o avental e ficou bastante claro que os cinco grandes cortes profundos que expunham até os ossos da queixada do velho cavalo tinha sido feitos pelos afiados dentes de sabre do trairão.

Embasbacado com o ocorrido, seu João procurou explicação junto ao Zé Gaiola, um renomado pescador que, com ar de profundo conhecedor da matéria, falou o que provavelmente havia acontecido.

Disse o Zé que a traíra é um peixe ovíparo que desova por época das cheias e em lugares rasos do lago. Após desovar a traíra fica protegendo os ovos do ataque dos lambaris ou de qualquer outro predador. Pois bem, o Pelintra meteu o bocão no ninho da bruta, que não teve dúvidas e cravou os dentes afiados em seu beiço para proteger a ninhada. Num ato de puro reflexo e de defesa o cavalo sacudiu a cabeça e arremessou a traíra pra fora do lago.

Todos em Itaquera aceitaram a explicação do Zé Gaiola e, a partir deste fato, o Pelintra passou a ser o único cavalo pescador, e sua fama percorreu toda a região.

Seu João Coutinho enjeitou muitos contos de réis pelo cavalo que morreu aos dezessete anos de idade. Em sua sepultura, lá no sítio do Pinheirinho, hoje recortado pela Estrada do Pêssego, existe uma cruz com os dizeres "Aqui está enterrado uma lenda, Pelintra, único cavalo pescador do mundo, nascido e morto em Itaquera".

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