Nos anos 1950, nós, garotos moradores da periferia de São Paulo, todas as tardes, após a feitura das lições escolares de casa, corríamos até à rua ao encontro dos amigos para uma acirrada "pelada". Esse era o nome dado ao futebol praticado entre os meninos, cujas regras eram próprias de cada região.
Eu e minha família residíamos na Rua Tenente Landy, no bairro da Lapa-de-Baixo, e, como todas as ruas do lugarejo, à época, não era pavimentada, sendo o chão de terra batida. As bolas usadas para o jogo ou eram de borracha vermelha ou de folhas de jornal socadas dentro de uma meia comprida de nylon para mulheres, com o cano virado e desvirado tantas vezes até que fosse conseguido o formato arredondado. Assim eram confeccionadas as "bolas de meia".
Normalmente os dois "craques" do pedaço disputavam um "par ou ímpar" e o vencedor escolhia em primeiro lugar, obviamente, o melhor jogador entre a turma. Ao perdedor restava dar preferência ao segundo melhor e assim cada um fazia alternadamente suas opções, de acordo com as qualidades futebolísticas dos colegas, a seu gosto, para formar sua equipe. O número de componentes tinha que ser igual, de um e outro time.
O gol tinha seu vão estipulado por passadas e demarcado por dois tijolos; as traves e o travessão eram imaginários, todos jogavam descalços e o ganhador do "par ou ímpar" tinha ainda, por direito, iniciar a peleja com a bola, determinar o lado da rua que ficaria o seu goleiro e se jogariam com ou sem camisas.
O último quarteirão da Rua Tenente Landy era bem plano e não havia trânsito de veículos, uma vez que o final dela era fronteiriço à várzea do Rio Tietê. No meio do quarteirão morava um senhor septuagenário, italiano nascido em Nápoles, sempre de mau humor com a vida e sem amigos, habitualmente vestido com chapéu, camisa branca de mangas compridas, colete, calça social com suspensórios, meias e sandálias de couro. O napolitano passava as tardes sentado num tamborete em frente à sua casa com um grosso cigarro de palha enfiado na boca, cujo odor das baforadas era sentido na outra esquina.
Durante nossas peladas diárias, se a bola chegasse às proximidades do velho, a desgraça estava feita. Sendo a de meia, ele dava um bico com o pé direito com tal força que a pelota atravessava toda a largura da rua e caia no jardim de um sobrado, onde um buldogue alucinado destroçava-a com inacreditável voracidade. Se fosse a de borracha, o italiano chegava às portas da loucura, pois ela quicava em demasia e ele tinha dificuldades em agarrá-la. Quando conseguia, com crueldade psicótica, tirava do bolso da calça um canivete do tipo pica fumo, com a lâmina larga e afiada, aplicava um golpe tão brutal, que, de subitâneo, cortava a bola ao meio e, entre gargalhadas sarcásticas, jogava os dois pedaços na rua, gritando para quem quisesse ouvir:
– Cambada ‘di’ vagabundo! ‘A'lore tem due bola para jogare a futebola’!
Certo dia, cansados de tantas bolas perdidas, a meninada resolveu fazer uma reunião e escolher a melhor ideia para dar solução ao problema, que, para variar, a aceita foi a do Túlio, o gênio da escola e o pior jogador de futebol da zona oeste de São Paulo.
Na tarde seguinte, ele apareceu na rua com uma sacola de crochê, carregando dentro dela uma bola de bocha do seu avô, igualmente italiano como o velho, mas nascido em Mântua, com o qual não sentia nenhuma simpatia e emprestou a bocha para o neto com muita satisfação. Simulamos uma pelada e o Túlio, rolando a bola de madeira na direção do italiano, bradou:
– "Véio"! Olha a bola!
O carcamano se levantou do tamborete e desferiu com o pé direito um violentíssimo chute na bocha, a qual, ficou imóvel à sua frente. Lei da ação e reação. Seu pé foi impelido para trás na mesma intensidade do chute. A debandada da molecada foi geral e o último a se evadir foi o Túlio com a bocha sã e salva dentro da sacola.
Só voltamos aos jogos quando a poeira assentou e, depois de algumas semanas, espantados vimos sentado no tamborete em frente à sua casa o velho, fumando o grosso cigarro de palha arrebenta-peito com o seu vestuário costumeiro, o chapéu, a camisa branca de mangas compridas, colete, calça social com suspensórios, meias e sandálias de couro, acrescido de uma lindíssima bengala de pau-rosa.
E-mail: [email protected]