O rei de papel crepom…

Benedito vinha contente pelo corredor da escola. Antes de começar a descer a escada, esticou os olhos tentando localizar a inspetora que vivia grudada em seus calcanhares. Uma sombra, isto é o que era.<br>Vendo tudo vazio, o negrinho desconjurou em voz alta, "sai, sombra minha, sai!" e deu uma gostosa gargalhada. Em seguida começou a descida do jeito que gostava, pulando de três em três degraus. Não foi além de alguns pulos porque uma professora que subia assustou-o, parou sem jeito esperando a bronca, mas a professora passou e sorriu para ele.<br><br>Benedito respirou fundo e sentiu se aliviado, pois tinha a sensação de aquele era seu dia de sorte. Em compensação, tinha dias em que tomava muitas broncas. Na classe, nos corredores, no pátio, na hora da merenda. E em casa então, tomava cada cacete do seu pai e daquele irmão metido a mandão que ficava dias com o corpo todo dolorido… Até o seu José da vendinha vivia lhe dando piparotes na orelha, quando ia comprar pão para a mãe. Tinha que ser uma sina…<br><br>Dia de feira ficava cansado de tanto ser enxotado. Vinha encostando de mansinho, disfarçando, com jeito de quem não quer nada e logo ouvia "fora moleque, fora! Vai circulando, vai andando!" E lá se ia Benedito, de enxotada em enxotada até o finzinho da feira, lá aonde o japonês fritava cada pastel de deixar a boca cheia d'água. Às vezes ele pegava coragem e cutucava alguma dona que passava, pedindo, "tia, compra um pastel pra mim? Compra?".<br><br>Quando esta comprava, Benedito ficava comendo, debruçado na barraca. O olho comprido espiando o japonês fritar os pastéis naquele tacho grande, cheio de um óleo escuro e fumacento. O japonês ficava encarando o menino, meio com medo que espantasse as freguesas que encostavam desconfiadas, apertando as carteiras. Pensando bem, este ano até que estava muito bom… A professora da classe, neta de um índio havia gostado muito dele e ficava sempre explicando as lições, ensinando muitas vezes. <br><br>E olha que ela era brava, uma onça! Um dia chegou até a picar todo o caderno do Benedito porque estava um lixo, uma porcaria. Deu um caderno novo, encapado, e avisou que não poderia nem arrancar uma folha porque estavam todas contadas e numeradas. Benedito sabia que seu caderno era relaxado, mas cadê tempo? Toda tarde amigos vinham chamar para empinar, apressando, avisando que o vento ia virar e ele ia perder a hora do “laça”. E o quadrado, a paixão de Benedito, pendurado lá na cozinha, tinindo, chamando, tentando, pedindo para ser empinado. <br><br>Voava então com a lição de casa, desse no que desse, e corria para o campinho. Dava joguinho fazendo-o dançar nos céus “relando” nos outros, mas não se deixando laçar. Era o rei dos céus… A rabiola, feita de folha de caderno cortada bem fininho traçava arabescos riscando o azul. Bacana este quadrado, não havia melhor em toda a vila.<br><br>Um dia, ao sentir muita raiva, a professora sentou Benedito lá na frente, bem do seu lado e avisou que este seria seu lugar até o final do ano… Chamava-o o tempo todo, "Benedito, apague a lousa! Benedito, distribua os cadernos! Benedito, venha ler a composição! Benedito, recolha as provas!" Gostou porque se sentiu importante. Ta certo que quando distribuía ou recolhia os cadernos aproveitava para distribuir, também, uns bons cacetes em todos os colegas da fileira. Chutava e cutucava todo coitado que se atrevesse a vir até a mesa da professora perguntar alguma coisa. <br><br>Tudo à surdina, sem deixar que ela percebesse, "também quando aquela ali via… Deus que me livre, o ouvido não aguentava de tanto sermão!". Benedito era um negrinho safado, matreiro e atrevido.<br>Feio, mirrado, cabelo duro feito “Bom Bril” e preto que até azulava. Mas quando ria, o mundo parava encantado, era um riso doce que tornava a brisa leve, silenciando tudo ao redor. <br><br>Sempre que abria aquele sorrisão, o outro ficava com o coração derretido feito manteiga fora da geladeira, amolecia, balançava a cabeça, acariciava a carapinha dura e perdoava tudo. Tinha dias em que Benedito não sentia vontade de rir, ficava emburrado o tempo todo.<br>Outros dias não. Como hoje, dias em que tudo dava certo. Havia sido elogiado pela professora e aquela ali lhe pediu que lesse a composição, em voz alta, para toda a classe ouvir. <br><br>Ficou vermelho, mas lá no fundo o coração bateu forte, de orgulho. Quando sentou distribuiu uns tapões no colega do lado que ria enquanto ele lia e a professora apenas olhou torto, nem deu bronca. Os colegas eram uns folgadinhos e não podia dar moleza, os cacetes eram para manter o respeito e não deixar que perdessem o medo. Agora, estava levando as cadernetas para serem carimbadas e nem cruzou com a inspetora…<br><br>Aproveitou para dar uma passadinha perto da cozinha e viu que a merenda seria pão com salsicha, que delícia, se continuasse com esta sorte pensou que até poderia encontrar a diretoria vazia e espiar a coleção de troféus e de medalhas da diretoria. Um dia gostaria de ser diretor de escola e seria dono desta coleção, ficaria o tempo todo sentado olhando os troféus e medalhas, seria o diretor Benedito e ordenaria que a merenda fosse pão com salsicha, todos os dias, inspetora ficaria só dando brilho nas peças e professora teria que ser neta de índio.<br><br>Neta de índio sabia contar cada história que deixava o negrinho de boca aberta, só babando… Na semana passada, ela havia contado a história dos reis Magos e Benedito ficou eufórico quando soube do Rei Baltazar, o rei negro. Aproveitou para estalar uns bons tapões na orelha do loirinho abestalhado, que sentava atrás dele, "respeito viu meu chapa, respeito que a gente até tem rei!". A professora ficou uma onça, disse que iria suspender a apresentação do presépio vivo, que Benedito não seria mais o rei Baltazar. Os olhos de Benedito ficavam encharcados e o coração encolhido.<br><br>Então Benedito rezou a semana toda para aquele Deus da professora, o do olho grande, aquele que via tudo o que a gente fazia… Com a professora havia aprendido a rezar para o Deus do olho grande. Todos os dias, na entrada, a classe ficava de pé e rezava agradecendo pelo dia que se iniciava. “Os olhos que o podiam ver, os ouvidos que o podiam ouvir, os pés que caminhariam todo este dia…” Benedito achava que a professora era amiga deste Deus do olho grande porque sabia muitas coisas sobre ele, histórias, rezas, milagres…<br><br>Foi uma semana diferente… Não distribuiu os cacetes diários, parou com os pulos e correrias, não arrancou folha de caderno, só rezava e ficava bonzinho para o Deus do olho grande ver e entrar no coração da professora para que ela o perdoe. Foi então que a professora chamou Benedito em uma sala vazia, tirou de um saco a roupa vermelha de papel crepom, a coroa de papel laminado e, largando aquele sermão, foi fazendo-o experimentar a roupa.<br><br>- Desta vez vou perdoar! Mas, se o senhor continuar batendo nos colegas, juro que tiro você da festa de Natal e coloco outro menino no presépio vivo, entendeu?… Seu "mão comprida!" Benedito entendeu e jurou que seria o Rei Baltazar e que nunca deixaria outro menino colocar aquela roupa bonita, isto ele prometeu, "seria o Rei Baltazar nem que tivesse de amarrar a "mão comprida!". <br><br>Perdido em meio à tantos pensamentos passou pela secretaria da escola e quase deu de encontro com o guarda sentado em uma cadeira, no portão: – Benedito! Perdeu o rumo? A escola é lá pra trás! Voltando rapidamente, rindo gostoso e rasgado, Benedito enfiou a cabeça na janelinha da secretaria e pediu: – tia, a professora pediu que a senhora carimbasse as "cardinetas".<br><br>Enquanto esperava, pôs-se a cantarolar.<br><br>"Bate o sino, pequenino,<br>Sino de Belém,<br>Já nasceu o Deus menino,<br>Para o nosso bem…"<br><br>E, lá no reino do faz de conta, um rei negro sorriu feliz. Sempre que se aproxima o Natal eu me lembro do presépio vivo que a professora Ena fazia como apresentação do final de ano no Jardim Guairacás. Neta de índio, professora, mestra e doutora, ela e seu aluno, o "Binidito" (como esta o chamava), encenaram o mais lindo e comovente de todos os presépios vivos. <br><br>Partilhamos durante aquele ano os mesmos sonhos, anseios e problemas do cotidiano, mas a vida nos levou, a todos, para caminhos diversos. Quiçá um dia nos reencontremos no infinito!<br><br><br>E-mail do autor: [email protected]